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domingo, novembro 11, 2007

Retiro




Desculpem a prolongada ausência, mas eu estava precisando passar uns dias no Éden. Aos poucos visitarei quem comentou, agora, já que estou de volta à terra, vamos à labuta.

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quinta-feira, novembro 08, 2007

Reminiscências e Resultado



Quando guri, lá pelos sete, oito anos, minha mãe pedia que eu passasse a limpo suas receitas culinárias em um caderno e suas receitas de tricô, bordado e crochê em outro. Talvez fosse preguiça dela, talvez para me manter ocupado, endiabrado que eu era. Ela tinha, e ainda tem, uma letra linda como era comum terem as moçoilas normalistas. Para que minhas letras não destoassem muito da beleza dos traçados das dela, eu caprichava. Me lembro de ter passado tardes inteiras escrevendo naquele caderno pequeno, mas de muitas folhas e com espiral largo de metal e capa com quadrados vermelhos entrelaçados.

Meu pai costumava sentar-se na varanda após chegar do trabalho, numa cadeira de balanço de ferro e espaguetes verdes, e lia seus bolsilivros. Era dois, três por dia. Depois de lê-los, pedia para que eu fosse na casa de um dos muitos amigos trocar. Eu só andava descalço e nas ruas, corria. Achava tedioso caminhar. Colocava dez, doze livrinhos embaixo do braço e saía em disparada, entregava os livros para o destinatário, recebia outros tantos em troca e voltava correndo para entregá-los ao meu pai. Uma dessas trocas foi uma aventura. A ordem era ir até a cadeia e entregar três bang-bang para um preso. O soldado me levou até a cela, abriu a grade e eu, que assistia aos filmes de mocinho e bandido no Cine Melhém, me senti amedrontado ao entrar na cela dos três homens maus que conversavam estirados, de calção, em seus catres. Um deles fez sinal com a mão para que eu lhe entregasse os livros, passou a mão na minha cabeça, agradeceu e me entregou outros três. Nunca mais entrei numa cadeia, mas, pelo que vejo nos noticiários, imagino que elas não tenham mais aquele ar pacífico.

De tanto escrever para minha mãe e de tanto levar os livros do meu pai para cima e para baixo, fui tomando gosto pelas duas coisas. Quando não estava na escola ou estava fazendo arte, pregando peça nos meus irmãos, ou estava lendo um dos bolsilivros ou estava tentando escrever alguma coisa. Minha mãe dizia que aquela leitura não era para minha idade, mas eu continuava lendo e gostando.

Lá pela sétima série, já com outros livros além dos livrinhos do velho Chico, gibis aos montes, MAD e já me interessando no Pasquim, Veja e até a Visão, irmã direitista da Veja, em parceria com meu irmão criei um super herói. Eu escrevia as histórias e ele desenhava. Fazia as figuras a lápis num cadernão enorme, mais de 500 folhas, cinqüenta centímetros de comprimento por quarenta de largura. Era minha estréia na ficção.

Eu era um garoto tímido, retraído e de poucos amigos, romântico e sonhador. Conheci a poesia mais ou menos por esse tempo. Nos livros de literatura ou gramática que usava na escola, procurava as poesias e fui gostando. Drumond, Vinícius, Manuel Bandeira, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Schimidt, Cecília, Gil Vicente... Eram muitos, de todas as épocas, escolas, estilos e eu devorava a todos e achei que seria capaz de escrever poesias também. E escrevia aos borbotões. Foram centenas delas.

No primeiro ano científico conheci o teatro. Por oito anos fui dirigido por Cláudio Barradas, hoje pároco de Santa Isabel, interior do Pará. Um intelectual fantástico. Foi o homem que ensinou a ler, a separar o texto do pretexto e do subtexto. Foi o grande guru que tive e a quem devo muito. Me fez entender que teatro não era apenas representação, mas muita literatura, pintura, arquitetura, óptica, enfim, a arte completa que pode usar todas as outras e ainda assim ficar incompleta.

Cláudio me levou de volta ao mundo da prosa que eu havia abandonado com os bolsilivros. Esaú e Jacó, A Guerra do Fim do Mundo, Memórias de Um Sargento de Milícia, Ao Correr da Pena, Teatro Completo de Artur de Azevedo, Porque Não Se Matava,... Foram tantos os livros que ele me emprestava ou indicava... E me caíram nas mãos as crônicas de Oto Lara Resende, Rubem Braga, Drumond... E eu comecei a achar que poderia escrever prosas também, mas tinha medo. Ouvia os autores falarem que escrever é um sacrifício, que é doloroso, um castigo sem fim, e os melhores deles ainda falam hoje, como João Ubaldo, por exemplo. Preferia manter minha pena traçando versos tontos, sem qualquer brilho, mas sem riscos, afinal de contas, qualquer molequinho de quarta série primária escreve versos e só os verdadeiros intelectuais vêem a poesia como arte ou literatura e são poucos os verdadeiros intelectuais, pouquíssimos. Com versos eu conquistava as menininhas tolas e românticas como eu e causava inveja nos brutamontes acéfalos. Eu acreditava que “a pena vence a espada”. Melhor ficar acomodado com meus versinhos tortos do que correr riscos com a prosa perigosa.

Vinte e poucos anos, recém saído da escola, família morando em outro estado, solitário e sem um puto no bolso, saí à caça do pão. Porteiro de hotel, garçon, instalador de telefones, cantor e muita gandaia. Precisava tomar um rumo na vida ou morreria pobre e com cirrose.

Surgiu um concurso literário, vinte e dois temas, cada concorrente poderia inscrever trabalhos em cinco. Inscrevi meus cinco, ganhei dois e tive uma menção honrosa. Peguei a grana e vim embora para a Bahia onde havia convite e promessa de emprego.

A prosa continuava contida.

Chegou o dia em que ela se rebelou e resolveu me dar ordens, forçou seu nascimento e fui tomando gosto pela vida. Me fez rememorar um papo que tive com Inácio de Loyola Brandão. Depois de uma palestra na UFPA, durante um bate papo ele me confidenciou: “se você tem um final, você tem uma obra”. Me disse que era um segredo que havia aprendido com uma professorinha do primário e que havia praticado toda a vida, sua obra tem provado que a professora sabia das coisas. Segui o conselho da professora do Inácio. Se tenho um final, tenho um conto.

E comecei a “contear”. Mas guardava na gaveta que enchia, enchia... Não tinha coragem de mostrar às pessoas com medo da crítica ser arrasadora. Mas os contos começaram a arrebentar a gaveta querendo sair. Aos pouquinhos foram virando blog e os amigos foram sabendo de sua existência. E amigos são bons para duas coisas: ajudarem-nos e nos colocarem em confusão. Tanto insistiram, cobraram, animavam, massageavam meu ego, que resolvi publicar. Eis que nasceu De Depois de Já.

Ansiedade e insegurança antecedem o lançamento, que ocorrerá dia 14. Já está nos sites de notícias, em coluna social, entrevista marcada em rádio na segunda-feira, coquetel presenteado pelos amigos e a sensação esquisita de que não fui eu quem escreveu aquilo que leio agora em brochura. Vamos ver no que vai dar.

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quarta-feira, novembro 07, 2007

Olhos Abertos



Aderaldo não dormia.Ainda bebê, recém saído do útero, já apresentava os olhos arregalados. Chorava quando sentia fome, chorava quando tinha sede, chorava quando sentia cólicas, chorava quando sujava os cueiros, mas não dormia.

A mãe o colocava no colo, cantava mil cantigas de ninar, mas o pequeno Aderaldo sequer mostrava sinais de sono. Caladinho, observava os lábios da mãe se mexendo, ouvia a voz melodiosa que todas as mães, mesmo as mais desafinadas, têm quando cantam “Tutu Marambá”, “boi da cara preta” ou qualquer cantiga para adormecer. Por horas a mãe se esforçava, até ficar rouca, mas nada do rebento dormir.

Com o tempo os pais desistiram, acostumaram-se com a insônia permanente do guri. Acreditavam que a criança dormia depois deles e não se preocupavam. O pai, curioso, passou a acordar de madrugada na esperança de flagrar o filho de olhos fechados no berço. Pé ante pé se aproximava, mas lá estavam aqueles pequenos olhos negros o observando.

Apenas por cisma, o levaram ao médico que não acreditou em seu relato. Por via das dúvidas, o deixaram internado por dois dias no hospital monitorado 24 horas por câmeras de vídeo e visitas constantes das enfermeiras, mas sequer um cochilo foi observado pelos olhos eletrônicos ou por aquele monte de eletrodos colados em sua cabecinha. Como os exames clínicos não acusavam qualquer anormalidade, o liberaram.

Aderaldo crescia, estudava, jogava bola, brincava com os colegas, batia e apanhava, apaixonava-se pelas professoras e pelas colegas... Vida normal de menino, mas não dormia.

Para preencher as madrugadas silenciosas, o garoto lia tudo o que lhe passava diante dos olhos abertos, jogava ao computador, estudava, assaltava a geladeira, fazia amigos virtuais, mas não dormia.

Tornou-se um funcionário exemplar no mercado financeiro. Seus olhos não perdiam nada do que acontecia nas bolsas de todo o mundo. De madrugada, quando seus colegas e concorrentes dormiam, Aderaldo acompanhava as bolsas de Tóquio e Seul. Investia, especulava, fazia fortuna.

Conseguiu uma velhice rica e confortável. Envelheceu desperto como vivera. Em seu enterro fecharam o caixão, mas não conseguiram fechar seus olhos.

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terça-feira, novembro 06, 2007

Adenevaldo


Imagem daqui


Prazer, chefia. Adenevaldo Gobera Sitônio, Gobera por parte de mãe e Sitônio por parte de pai. Pode me chamar de Guêba, a seu dispor. Guêba do Cavaco, pra ser mais claro. Setenta e dois anos de puro samba e malandragem, saco? Filho de Josenaldo Sitônio e Adegeilza Gobera Sitônio, nascido em Pau Grande, terra do Mané, saca o Mane? Pois é, mermão, o maior craque que os quadrado de grama já viu. Vossa senhoria sabia que o Mané era amigão do meu progenitor? E era mermo! Além do quê, era um sujeito de prima. Depois das pelada, lá no campinho do arranca-tôco, passava na bodega do velho Jôse, meu pai, e encaçapava umas branquinha legal, isso quando não era antes do quebra-canela. Só num conseguiam quebrar as canela do Mané. O camarada era mais liso que enguia ensaboada, ninguém encostava no negão. Tá, ele num era negão, era meio índio, incrusive pegava passarinho com as facilidade que só os índio têm. Mas nós chamava ele de Negão. Uma vez o Mané me deu um dibre que minhas perna quais fica torta que nem as dele. Dotô, eu poderia falá do cumpade Mané até vossa incelênça ficá cum calo nos ouvido, mas o sinhô tá querendo saber mesmo é de minha labuta, né mermo? Pois toca o intêrro! Quando o Mané veio pro Rio meu pai num viu mais porque ficar emPau Grande. Queria ver o Mané jogar no Maraca e veio imbora também. Mudamo pra essa merma casa onde moro hoje, aqui em Bonsucesso. Tu num vai acreditar, dotô, mas todo dia tinha jornalista querendo falar com meu pai, tudo afim de ouvir umas história do Mané. A vizinhança, tudo gente boa, mas sem grana pra pagar nem a geral, vinha pro buteco do velho Jôse pra ouvir os jogos do Bota no rádio rabo-quente que meu pai deixava no máximo. Cada dibre era como se fosse um gol, a gente via com os ouvido. Era o dia que mais vinha cachaça pros proleta e cerveja pros abonado. E meu velho contava as história de Pau Grande pra malandragem até altas hora da madruga. Devo muito a Pau Grande. Os camarada me admira porque fui amigo do Mané e as mulhé gosta de mim porque sou de Pau Grande. Sacou? Sacou?

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sábado, novembro 03, 2007

Competição


Adalgiza Silveira Andrada Cavalcanti Bulhões não era uma mulher qualquer de Cabrobó, era a mais nobre, mais altiva e mais rica. Ainda pequenininha a mãe, dona Elânia, ensinou que não deveria se juntar com as meninas ordinárias – ordinárias não no sentido de sem qualidade ou que não tenham bom caráter, mas comuns, iguais a todos da própria laia, embora, no fundo, o significado fosse o mesmo para a rígida mãe -, sua filha não poderia ser comparada com aquelas garotas de joelhos encardidos e cabelos alisados à banha de porco, filhas de funcionários públicos subalternos e prestadores de serviços nas fazendas de seu pai ou vizinhança.

O sobrenome do pai não foi acrescentado ao da criança. Dona Elânia não permitiria que filha sua carregasse um Silva depois do importante Cavalcanti, herdado dos espanhóis que por ali passaram. Na verdade, dona Elânia só se casara com o apagado Gilsones por conta do único cartório da região que o rapaz herdara e dos muitos dinheiros que tinha a receber dos devedores do pai, agiota respeitado e violento, dono de três capangas com sangue nos olhos que não permitiam que as promissórias caducassem.

Elânia foi uma moça prendada, educada no Recife, tocava piano e fazia bordados com técnica turca, o que a tornava boa demais para os caipiras de Cabrobó. Batia o pé, queria casar-se, mas não com qualquer um, o que fez com que o Coronel Atenório perdesse os últimos fios de cabelos em busca do noivo ideal. Os pretendentes que não satisfaziam as exigências mínimas eram enxotados sob as ameaças do chicote e da garrucha.

Ao saber que o pai de Gilsones morrera e o rapaz chegara às pressas de Salvador, onde estudava Direito, Atenório viu nele as últimas esperanças. Bem apessoado, educado e com um negócio próprio, além das dívidas de agiotagem a receber, Gilsones tornou-se a fonte de inspiração para os muitos argumentos que o Coronel teve que inventar até, depois de muito suar, argumentar, espernear, convenceu Elânia a aceitá-lo como nubente. Para Gilsones seria um excelente negócio, não havia como recusar.

Dezoito meses depois do casamento, Elânia deu à luz Adagilza, para quem foram providenciadas damas-de-leite, babá da capital e professores particulares. Após a festa de três dias dos seus quinze anos, fora mandada para a Escola de Moças de Madame Donorá, no Recife. Seguia os passos da mãe.

Depois de formada e de volta à cidade, seguia também a sina de não conseguir um noivo com o cabedal de qualidades e riquezas digno de sua importância. A filha queria um noivo, mas rejeitava todos. Um não tinha traquejo no vestir, outro não sabia se portar numa mesa de três talheres e guardanapos de linho, outro tinha as pontas dos bigodes mal aparadas, outro não lustrava os sapatos, aquele não tinha onde cair vivo, esse não usava perfume francês, e os defeitos dos rapazes eram catados a pinça.

Quando instalou-se a indústria de álcool e Godinho Bulhões apareceu no cartório para registrar os papéis, Gilsones já o viu de casa no altar, braços dados com Adalgiza. Tanto fez, tanto gastou, tanto investiu e insistiu que terminou convencendo os jovens que foram feitos um para o outro. Para alívio geral, casaram-se. Mas não em qualquer dia. Casaram-se no Natal e a ceia das famílias mais abastadas, todas convidadas para as núpcias, só aconteceria no dia 26, o casório da neta do Coronel Atenório era mais importante que o nascimento de Cristo.

Os negócios de Godinho, porém, começaram a dar errado. As plantações de cana sofreram uma praga de besouros e brocas, a terra não mostrou-se tão boa para o plantio como mostravam os estudos anteriores, as estradas não davam segurança para o escoamento da produção que diminuía safra após safra. Por conta dos muitos acidentes com os caminhões, as seguradoras aumentavam o preço das apólices. Godinho ia ladeira abaixo.

Adalgiza, rainha desde criança, pouco ligava para a bancarrota do marido, algo mais grave a assustava. Havia chegado à cidade a família Correia Carrilho, gente rica de São Paulo que erguia hotéis a torto e a direito. Em cada cidade com mais de vinte mil habitantes da Zona da Mata, de Sergipe ao Rio Grande do Norte, abririam um hotel. Cabrobó fora escolhida como sede do império que se formava por ficar eqüidistante das extremidades da área a ser abraçada pela família.

Setembrino Correia Carilho comprava terras, contratava gente, erguia prédios, aparecia nos jornais, hospedava romeiros, vendedores, funcionários do governo, fugitivos... Não importava quem vinha ou quem ia, Setembrino abrigava, alimentava e ficava com seu dinheiro. A fortuna, que não era pouca, se multiplicava. Isso nada dizia a Adalgiza, pouco afeita a negócios, o que lhe tirava o sono e o sossego era Zaninha Correia Carrilho, mulher de Setembrino.

Zaninha trouxe para o sertão o conceito de grife; óculos de sol de marcas famosas que Adalgiza só conhecia das revistas, roupas coloridas e leves, que ajudavam a enfrentar o calor da região, tecidas na China, diziam as comadres. Pouco comprava em Cabrobó, mandava buscar em Recife, Salvador ou São Paulo, onde havia mais variação.

Simpática e boa de conversa, Zaninha conquistava a todos. As mulheres não evitavam a comparação entre as duas e Adalgiza sempre saía perdendo. A paulista era mais dada, a paulista elogiava as pessoas, a paulista cumprimentava até os feirantes e, pior, a paulista era mais elegante, a paulista era mais bonita.

A cidade crescendo, mais gente empregada, dinheiro circulando, as portas se abrindo para o progresso. Uma rede da capital instalou a primeira loja de departamentos. Na solenidade de inauguração o prefeito, o padre, o juiz, Gilsones e Elânia, Adalgiza e Godinho cabisbaixo, Zaninha esfuziante e Setembrino com um terno cortado sob medida em fazenda de risca de giz.

Abertas as portas e dada a largada para as compras, começou a disputa tácita entre as duas mulheres. Cada uma com seu carrinho, percorriam os corredores lado a lado. Se uma pegava um secador de cabelos, a outra pegava um secador e uma touca elétrica; uma escolhia um cobertor, outra um edredon, mesmo não fazendo frio em Cabrobó; Adalgiza comprou um salto alto italiano, Zaninha escolheu um scarpin francês; Zaninha comprou foie gras, Adalgiza, scargot. Olhavam-se, a princípio de soslaio, no calor da competição, com ódio.

Cavalheirescamente, Godinho e Setembrino, passeando na sessão de vinhos, conversavam. O hoteleiro com um sorriso tatuado na cara; o agiota com o cenho nervoso. Para Godinho, cada produto que a mulher colocava na cesta era como uma flechada no peito. A fúria de Adalgiza em comprar aumentava o pesadelo do marido ao pensar em como pagaria.

Mas a vida tem seu jeitinho de arrumar as coisas, embora de maneira dolorida, por vezes. Ao passarem pelos maridos com o terceiro carrinho abarrotado, as mulheres sorriam, uma feliz, a outra, desesperada. O coração de Godinho não agüentou, bateu em falso. Seu rosto empalideceu, as pernas bambearam, o peito ardia como se violentado por tição em brasa. Estatelou-se entre as gôndolas e as garrafas milionárias.

A loja inteira pára e corre em socorro ao conterrâneo ilustre. Muita gente, murmurinho, a sirene da ambulância e as compras das competidoras suspensas.

Ao acordar no hospital, ainda tenso, Godinho virou-se para a mulher, pronto para ter outro enfarte.

- Daginha, meu amor, como vamos pagar tudo aquilo?

- Terminei não comprando, marido. Deixei tudo nos carrinhos quando vim correndo te socorrer.

Aliviado, Godinho esboçou um sorriso e conseguiu dormir. Não imagina, o coitado, que a cabeça da esposa maquinava como e quando voltar à loja e comprar o dobro do que quase comprara. Quem aquela paulistinha de merda pensa que é?




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