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sexta-feira, dezembro 30, 2005

"Nunca ouvi nada tão E vindo da classe A"
(Caetano Veloso ao calar as 2000 vaias ao chamar Odair José para cantar com ele no Phono 73)

Maravilhoso 2006 para todos!

Depois dos posers roubarem meu texto de anteontem, vamos tentar de novo. Retrospectiva.

Se alguém me perguntar como foi meu último revellion, não lembro.

Ou, o ano foi bom ou ruim? Sem querer dar uma de Poliana, lógico que foi bom. Mantive meu emprego de que gosto muito num país onde é comum se odiar o emprego que se tem. Não passei fome e ainda ajudei alguns a comerem. Tenho sempre o que vestir num país de descamisados e ainda pude dar roupas para alguém. Tenho um teto num país de sem tetos, não abriguei ninguém, mas ajudei alguém a se instalar. Me apaixonei, tive alguém apaixonado por mim que desapaixonou e eu não. Isso dói, mas não é o fim do mundo. Não perdi nenhum amigo e, ainda por cima, ganhei vários outros, a maioria por meio desse blog, e isso é ótimo. Não perdi meus velhos vícios, mas não ganhei nenhum que poderiam fazer a vida mais alegre. Lucro. Não editei meu livro, mas já o tenho escrito e ilustrado, por outro lado, com a quantidade de coisas que escrevi aqui, pela qualidade dos poucos e fiéis leitores que tenho e com o sem número de comentários quase sempre elogiosos, o ego engordou, fez ginástica e está com barriga de tanquinho, contrastando com a minha de chopp.

Enfim, estou vivo e pronto para outro ano. Vocês estão aí, com seus problemas alegrias e juntos encararemos o novo ano cheios de saúde, um sorriso em nossas faces e as mangas arregaçadas para a labuta.

Que vengam los toros!

quinta-feira, dezembro 29, 2005

Lá vem São Cristóvão
Todo crivado de flechas.
Bem feito,
quem mandou brincar com índios?
(Melquíades)

Sempre dói

Eunápolis, 30 de dezembro de 2005.

Minha mui amada rosa, Rosália,

A dor que dói mais que a dor do amor perdido é a dor da indiferença, de me saber excluído da sua vida. Não são só essas duas dores e a soma de todas as dores é uma prova para minha resistência.

Me dói não ter sabido reconquistá-la; dói a intromissão alheia em nosso tão novo romance, motivo maior de sua ruína; dói a lembrança de nossos bons momentos que eu sonhava fossem para sempre; dói a distância que eu sonhava se encurtar; dói não ter um ombro onde possa depositar minhas lágrimas, arredio que sou ao desabafo; dói não ouvir mais tua risada alegre e constante; dói saber que o abraço e o beijo não mais existirão; dói ver a morena bonita passar e eu comparar a beleza dela com a sua muito maior; dói não receber respostas aos meus apelos... São muitas dores.

Impossível fugir do clichê de desejar que o tempo voltasse para eu te falar tudo o que tenho guardado e não disse na hora certa, para evitar tudo o que não evitamos, para fazer com laços reais os laços etéreos que nos reuniam.

Mais uma dor se prepara para doer: a dor de respeitar tua vontade de não mais querer me ler, me ouvir, me ver.

O novo ano está chegando e invejo os braços que te abraçarão e os lábios que explorarão os teus no desejo de um ano novo excelente. Afora o beijo e o abraço, o desejo que daqui se dirige a ti é o mesmo, mas não apenas para o próximo ano, mas para todo o sempre.

Um de nós estando feliz é lucro, que seja tua essa felicidade.

Sinta p último beijo com sabor de saudade.

Do teu sempre teu, Admastor.

quarta-feira, dezembro 28, 2005

Pára o trem que minha avó caiu!


Posers
Poser

Ser poser é ser fashion. Legal, comecei com um vocabulário bem poser. Eles se acham autênticos, mas são iguaizinhos e estão em todos os lugares, são aqueles que se destacam por contestação constante sobre tudo o que se mostra à sua frente e, quando míopes, pelos óculos de aros grossos e pretos.

Na net estão sempre contra qualquer coisa, "odiando" (essa é a palavra mais usada pelo poser) o que o senso comum gosta, ou "amando" (essa é a segunda palavra mais usada pelo poser). Para odiar ou amar o poser usa dos argumentos mais esdrúxulos que se possa imaginar ou simplesmente não usam nenhum.

Costumam acreditar em qualquer idiotice que lêem ou ouvem num papinho regado a Smirnoff Ice ou a proseco. Nunca leram Paulo Coelho, mas o odeiam, ou leram Paulo Coelho e o amam, porque é moda odiá-lo ou amá-lo; nunca leram um livro ou uma crônica de jornal de Luis Fernando Veríssimo, mas amam Veríssimo por seus textos que circulam em profusão na internet, mesmo depois do próprio Veríssimo dizer que a maioria daqueles textos não serem de sua autoria. Claro que eles não conhecem essa afirmação do escritor gaúcho, ele falou isso em entrevista para jornal.

Me perdi em divagações. Não era sobre os posers que queria falar, mas as palavras às vezes tomam as rédeas de uma redação e terminam se organizando por vontade própria. Minha intenção era falar das retrospectivas que costumamos fazer nos finais de ano e dos planos para o próximo período, mas já que saiu isso aqui, que fique, afinal de contas eu "odeio" os posers.

segunda-feira, dezembro 26, 2005

"Se você oferecer, saiba que irão aceitar e você não comerá o seu suficiente. Se não oferecer será taxado de egoísta da pior espécie."
(Na Capa)

Chafariz da Praça Frei Calixto
A Ceia
No laguinho do charafiz da praça haviam carpas coloridas.

Ao redor da praça, lojas cheias.

Dentro das lojas, efervescência de compras.

Os presentes embalados, multicores papéis a serem rasgados à meia noite.

Supermercados lotados.

Os últimos componentes da ceia eram providenciados.

Nos corredores, entre as gôndolas, surgem nas mãos de crianças, senhoras e homens pobres as caixinhas para a "caixinha". Uns compram, outros pedem.

Bacalhau para uns, farinha para outros; perus para uns, carcaças de frangos para outros; avelãs para uns, amendoim para outros; para uns terceiros, nada disso, apenas a pouca esmola nas calçadas.

à meia noite, enquanto uns banqueteiam após a troca de presentes, alguém janta uma carpa frita, pescada no laguinho do chafariz da praça sob o olhar complacente do zelador.

domingo, dezembro 25, 2005

Alma lavada a vinho.



Dia 26


Hoje a cidade não tem hora para acordar.

O semblante dos poucos que encontramos pelas ruas não está mais leve nem mais feliz do que estava ontem, a mesma seriedade urbana de cada dia. Nada mudou de fato.

O velhinho de chapéu atravessa a praça como faz todos os dias, um garoto de rua se detém diante da vontade de destruir o presépio público, as portas da igreja encontram-se cerradas como sempre, os quase nenhum carro trafegam em direção à casa dos pais, dos sogros ou de um amigo mais querido onde será servido um almoço com o que restou da ceia.

Uma enfermeira passa uniformizada para seu plantão de 24 horas, um bêbado de cachaça barata ainda dorme sob a marquise da loja de artigos infantis, a balconista da loja de conveniências atende solícita...

Ao longe ecoam os restos de uma música natalina, provavelmente em uma casa de uma família reunida e alegre entre os abraços dos que se amam.

Nos joenais estampadas as mortes no trânsito e os suicídios dos deprimidos.

O Natal não mudou a dinâmica da vida, mas para os românticos e os otimistas trouxe o desejo de que cada dia continuasse igual a hoje.

sexta-feira, dezembro 23, 2005

Já ouço o "jingle", amanhã virá o "bell"


Matriz à noite
Mesmo Capitalista, O Natal é Cristão

Que seja consumista, capitalista! A principal reclamação que se ouve ou lê contra as comemorações do Natal é que se tornou uma festa materialista, mas, convenhamos, a grande maioria de nós não é nada espiritualista.

O cara vai à igreja, seja ela qual for, uma vez na vida e se diz um fiel seguidor de Deus;

O sujeito nunca leu a Bíblia (a maioria dos cristãos jamais leu) ou o Alcorão ou seja lá que livre religioso for, mas se acha um expert em religião e vomita regras que lhes foram enfiadas pelos ouvidos;

O sujeito vai a todas as missas e cultos, utiliza-se de álibi para conseguir a confiança e o respeito da sociedade, mas não exita em dar calotes, em passar a perna no outro na hora de fechar um negócio, de agredir a esposa e os filhos no segredo de quatro paredes;

O sujeito diz que acredita em Deus independentemente de ter uma religião, quando, de fato, acreditar em Deus é, das duas ou ambas, uma imposição social ou a procura por justificativas simplistas para a existência de tudo o que nos cerca e a nossa própria. Nós somos ensinados a acreditar em Deus, em céu e em inferno, em pecados, em castigos divinos, mas somos ensinados também que todos somos pecadores e não se tem como fugir disso. As velhas e eficientes culpas judaico-cristãs...

Ser ateu nos dias de hoje é ser tão discriminado quanto eram os leprosos nos tempos de Cristo. Os religiosos apelam para o livre arbítrio para justificar nossas decisões "erradas", mas não respeitam o livre arbítrio de um irmão questionar essa religiosidade pré-fabricada e imposta pelo próprio Estado quando cria feriados religiosos para agradar o Vaticano.

De minha parte, considero todo esse mercado em torno do Natal uma coisa muito cristã. O boom das vendas nessa época dá milhões de empregos na indústria, no comércio, nos serviços, pelo menos por algum tempo leva comida para milhões que nada têm a dar para os filhos, nos torna todos mais iguais, nos leva a questinamentos sobre o que fazemos e fizemos de bem para nossos vizinhos, distribui um pouco a renda acumulada nas mãos de poucos, traz alegria até mesmo para os incréus quando esses recebem um presente, aumenta os laços efetivos nos beijos e abraços. Se Jesus Cristo pregava a igualdade entre os homens, a festa natalina, capitalista ou não, ajuda a termos uma idéia da realização dos desejos de Cristo.

Ao comemorarmos nossos aniversários fazemos festas e queremos presentes. Se o Natal é o aniversário de Jesus, por que não se fazer festas e dar presentes?

A hipocrisia é maior em quem nega a importância da festa e se diz cristão do que de quem faz festa nesse dia.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

A árvore da minha cidade


Há quem não goste, mas, cá pra nós, me sinto muito bem na efervescência desses dias.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Aí a zebra disse para a mosca: "você não vai ganhar presente de Natal. Está na minha lista negra".



Tem texto meu sobre a banalização do "eu te amo", no blog da Gueixa.



Custa dinheiro, mas faz tão bem...

Sensibilidade

De posse do décimo terceiro salário, ele foi ao supermercado onde comprou uma cesta de Natal que havia se prometido dar de presente para a fiel empregada que cuidava da sua casa, da sua comida, de suas roupas como só sua mãe tivera a dedicação de cuidar.

Escolheu um bom vinho, o melhor panetone, as caras castanhas, a mais linda cesta... e enquanto a atendente montava o pacote, imaginava a satisfação da amiga ao receber o presente. Isso o fazia sentir-se bem.

Ao pisar na calçada com seu pacote vistoso foi abordado por um típico garoto brasileiro, dez anos, moreninho quase negro, cabelinhos cortados à máquina dois. O garoto vestia uma puída camisa de algodão, uma bermuda que aparentava ser o aproveitamento de uma velha calça jeans e gastos chinelos de plástico de tiras amarelas. Levava na mão uma caixinha cúbica caprichosamente encapada com papel vermelho com uma pequena fenda no alto.

- Moço, me dá uma moeda para eu comprar roupa pro Natal.

Passou-lhe pela mente, à velocidade de um raio, as lembranças da infância miserável, pé no chão, vermes no casebre de retalhos de madeira, das roupas velhas passadas de irmão para irmão conforme cresciam, até que não se tivesse mais o que usar.

Lembrou-se dos choros surdos dos seus pais às vésperas do aniversário de algum dos filhos, do dia das crianças, do Natal. Foi uma lembrança tão forte, tão dolorida e tão viva que não se permitiu pensar.

Com a cesta de presente em uma das mãos e a mão da criança em sua outra mão, dirigiu-se à loja de roupas infantis mais próxima e fez mais um coração feliz.

terça-feira, dezembro 20, 2005

A paixão é tão boa e tão assustadora quando viva e péssima e assustadora quando morta.



Amanhã terá um texto meu na Gueixa. Dêem uma confiridinha.



Carteiroooooo!!!!!!
Queridos papai e mamãe,
nem preciso dizer o quanto eu amo vocês e o quanto sou grata pelo muito que fizeram e ainda fazem por mim, né?

Sei o quanto é difícil para vocês ficarem longe da filha única que amam tanto quanto eu os amo, mas tenho uma nptícia triste para dar e é com o coração partido que tenho que lhes dizer isso, mas sei que entenderão, afinal, vocês me amam, não amam?

Quando vim para Viçosa sofri muito, nunca havia saído de perto de vocês, não conhecia ninguém aqui, costumes diferentes, comidas diferentes, tive que me acostumar a resolver minhas próprias coisas como providenciar comida, lavar minhas roupas, pagar minhas contas com o suado dinheirinho que me mandam. Fora tudo isso, toda a trabalheira da faculdade. Vida de calouro não é fácil, não. E ainda tinha a solidão. Ela dói mais que a saudade que sinto dos meus paizinhos queridos.

Aí apareceu o Arquibaldo, um gato, um gênio. Ele se preocupava comigo, me dava aulas particulares, me levava aos points legais da cidade, me apresentava pessoas... Não tive como resistir a todo o seu charme, seu bom humor, seu companheirismo, seu carinho, sua atenção e terminei me apaixonando. Fiquei com medo de falar isso para vocês antes, não sabia como reagiriam. Mas podem ficar tranqüilos que ele é um cara muito legal. Os pais são pessoas ótimas de Belo Horizonte e esse ano me convidaram para passar a ceia de Natal com eles.

Eu sei que vocês estão tristinhos com a minha não ida para passar o Natal com vocês em Itapemirim esse ano. mas é uma oportunidade única de conhecer Belo Horizonte e meus sogrinhos queridos. Fico tranqüila em saber que vou contar com a compreensão do seu amor por mim e entenderão.

Junto com essa carta mando minhas mais recentes fotos para colocarem na árvore, vai ser como se eu estivesse presente com vocês.

Prometo que no ano novo passarei juntinho com meus paizinhos do coração.

Beijos cheinhos de lágrimas de saudade.

Feliz Natal!

De sua filha muto amada, Adinália.

PS1: Perdi o semestre.
PS2: Estou grávida e nos casaremos em fevereiro.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

- Como está o trabalho novo?
- Tá legal, ruim é o horário noturno.
- Mas tá dando pra viver?
- Tô.


Tem gente que é bom de pretexto

Pretexto

- Mastolfo, quanto você me ama?
- O máximo que posso.
- Só isso?
- Como "só isso"? Olha que eu posso muito...
- Você ama alguém mais do que a mim?
- Bom...
- Como é que é?! Ama alguém mais do que a mim?
- Minha mãe, né?
- Viu? Viu?
- Viu o quê?
- Você poderia me amar mais do que me ama.
- Peraí, Giselda, mãe é mãe. Não vai me dizer que me ama mais do que à sua mãe.
- Não desconversa! Estamos falando do seu amor, não do meu.
- Ah, não! Provocou, agora agüemta.
- Quer saber? Cansei, não quero mais falar nisso.
- Não, senhora, agora quem quer continuar sou eu. É fácil, confessa que ama mais sua mãe que a mim.
- É, amo mesmo, mas mãe é mãe.
- Foi o que eu disse...
- Nem vem! Quando nós começamos a namorar você disse que eu era a mulher que você mais amava.
- Mãe é mãe, Giselda, mãe não é mulher, não para o filho.
- Não interessa! O fato é que você mentiu pra mim.
- Era só o que me faltava! Minha namorada querendo competir com a minha mãe...
- ...
- Vem cá, vem. Vamos parar com essa discussão boba. Dá um beijinho, dá.
- Nem pensar! Eu vou voltar pro Caludiomiro. Ele me ama de verdade e não tem mãe.

domingo, dezembro 18, 2005

Vou viver até morrer.

Leiam
Os 70 Já Morreram

Leiam o livro Labirintos da Moral, de Yves de La Taille e Mário Sérgio Cortella, Editora Papirus.

Como a maioria de vocês já deve saber ou, pelo menos, imaginar sou professor. De quê? Matemática. Ah! Então esse livro deve ser algum tratado sobre o uso moderno qualquer das ciências exatas. Não!

O pessoal das exatas não se dedica a ler listas telefônicas ou a biografia de Gauss, apenas. O livro trata da filosofia hipponga do "viva hoje como se fosse o último dia" ou o ridículo "carp diem", popularizado pelo filme Sociedade dos Poetas Mortos e por uma propaganda sabe-se lá de quê.

Por duas vezes, que me lembre, já falei disso por aqui. Em uma delas escrevi "vivier o dia como se fosse última é uma filosofia furada dos hippies dos anos 60. O que devemos fazer é viver o hoje da melhor maneira para que amanhã não hajam arrependimentos nem ressaca moral". Aí o senhor La Taille diz: "O 'aproveite o dia (carpe diem) é um grito de liberdade em relação a um projeto de vida que não faz sentido. Aquela geração vivia em uma constante negação de si própria. Mas o jovem de hoje não é sufocado por instituições totalitárias - pelo contrário, o discurso dos adultos é 'faça o que quiser, a vida é sua'. Na medida em que ele pensa 'vou aproveitar agora porque amanhã não sei o que vai acontecer', transforma seu presente num vácuo". (Revista Época, Nº 394, 5 de dezembro de 2005)

E esses adultos são aqueles que nos anos 70 "não confiavam em ninguém com mais de trinta anos", os mesmos que viviam de sexo, drogas e rock'n roll. Obsevemos ao nosso redor. As crianças educadas de forma mais presente dos pais, com mais limites, aqueles que tiveram uma educação dada por pais e não por amigos, companheiros, mais tradicionalista nos anos 70, têm hoje filhos mais equilibrados, também com mais limites.

"Ageração de 60 e 70 se enganou mais do que acertou e, no fundo, era mais egoista do que comunitária. Não houve um trabalho de formação individual para as crianças. Achou-se que bastava estar do lado de bons projetos, defender a noção de comunidade e a paz para ser um indivíduo ético. Foi um erro. O projeto coletivo morreu no mundo todo e não existe mais fidelidade e nada", continua Taille.

Já passou da hora de acabar o romantismo sobre a geração porralouquice. Minha convivência diária, há alguns bons anos, com centenas de adolescentes e suas famílias, me deixaram uma coisa bem clara, coisa essa, aliás, já pesquisada por cientistas de Oxford: crianças e adolescentes precisam e gostam, em seu íntimo, de serem direcionadas, cobradas e reprimidas cada vez que ultrapassarem os limites pré-determinados, elas precisam de regras muito bem estabelecidas e, em alguns casos, rígidas. Essa é uma forma de receberem a mensagem de que alguém gosta deles, se preocupa com seu bem estar.

Como sou apenas mais um professorzinho zé-ninguém tenho que bater palmas para esses pesquisadores de Oxford, para Içami Tiba, La Traille e Cortella. Eles têm melhores e mais eficientes meios de se fazerem ouvir do que um bloguezinho.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Quanto mais conheço os filhos dos outros, mais desejo não ter os meus.

www.borer-cartoon.ch
Adalzira

Toda noite a mesma coisa a noite toda, a diferença está nos dias da semana - sextas, sábados e domingos é maior - e na época do mês. Do primeiro ao quinto dia, quando o povão ainda está com o salário no bolso, o afluxo de homens ao puteiro de Madame Dorotéa é maior, dias em que a féria aumenta.

Adalzira, com sua morenice muito conservada em sua casca de 23 anos vividos à noite, é das mais solicitadas. Por vinte reais atende fazendo o básico, por mais um pouquinho faz estrepolias. Em média, não passava de meia hora com cada homem no quarto mobiliado com uma cama de casal, um criado mudo e uma cômoda onde guarda algumas roupas de emergência, um frasco de creme sabor de menta e alguns brinquedinhos para o deleite de clientes mais desinibidos e mais criativos. Uma das portas, a de entrada e saída, dá para o corredor onde se vêem outras oito portas iguais, a segunda liga o quarto ao banheiro munido de um chuveiro, pia e vaso. Nada de box ou cortinas, no máximo um sabonete barato e uma toalha suspeita.

A jovem puta não quer chegar aos trinta atendendo aqueles mal cheirosos mal amados e maus amantes. Não quer chegar à idade de Madame Dorotéa sem outra alternativa de sustento. Dos quarenta por cento que lhe cabem em cada trepada, gasta o básico para a sobrevivência, o restante vai para a caderneta de poupança. Será sua aposentadoria de puta e o início da vida de empresária dona de butique.

Nenhum homem a encanta, embora encante a muitos. Como todo mundo, sonha com um amoreterno e uma casinha com cercas brancas e flores nas janelas, mas já não tem certeza se conseguiria amar alguém depois de ter passado pelos braços e sob o peso de tantos mastodontes.

Não enjoa mais com seus hálitos de álcool e tabaco, nem com seus cheiros azedos de suor suado no trabalho diário na construção ou no escritório. Entendeu cedo que aqueles homens não queriam apenas sexo, desejavam ser amados, elogiados como não eram em suas vidas fora daquele antro. Ou queriam realizar fantasias que não tinham coragem de confessar a suas esposas ou namoradas. Aprendera que dando-lhes o que desejavam, além de seu corpo, poderia ganhar uma gorjeta que escondia de Madame Dorotéa, era seu caixa dois, por isso é carinhosa, boa ouvinte e sabe elogiar os parceiros efêmeros. Melhorando a auto-estima dos amantes eventuais, aumenta sua renda extra.

Depois de cada homem, um banho rápido e um purificador de ar para evitar o cheiro dos fluídos azedos no quarto que quase nunca vê o sol.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

- Você não vai namorar a guria só porque ela é burra?
- Eu quero mulher pra casar, não pra puxar carroça.

Melhor feriados que férias sem grana.
Parênteses

Os freqüentadores de mais de três meses devem lembrar-se de como era esse famigerado blog, notas curtas sobre acontecimentos cotidianos, e comentários ranzinzas e bem humorados. Com o excesso de trabalho e de falta de tempo a dinâmica foi mudando e terminou transformando-se no que é hoje, mais um blog literário do que crítico, embora sempre sobre um espacinho para as críticas sociais nos textos.

Agora, praticamente de férias e lendo muitos blogs políticos, de volta aos jornais e revistas mais freqüentemente, foi-me dando um comichão de ressuscitar o velho Esculacho, mas aí veio um dilema: como ficarão aqueles que vêm aqui por gostarem dos meus textos? Muitos reclamaram da primeira mudança e o número de leitores diários diminuiu consideravelmente, embora seja bem fiel e de altíssima qualidade (obrigado a vocês). Não seria justo deixar os leitores atuais na mão.

O meu blog de poesias está praticamente falido. Primeiro, porque não tenho atualizado com a constância que deveria e, segundo, porque está no Weblogge, que é aquela titica que todos já conhecem. Minha coluna no site do Pedro também está suspensa desde que o dono rezsolveu dar uma reformulada.

O que fazer, então? Simples, abrir outro blog.

O "porém": não tenho paciência para aprender a mexer em códigos HTML e coisas que tais.

A solução: pedir ajuda nesse "classificado". Alguém aí estaria disposto a fazer um template e montar o blog pra mim? Interessados podem mandar e-mail para pontes.mr@gmail.com

Quem sabe não aparece logo, logo o Esculacho Filial?

terça-feira, dezembro 13, 2005

"Sexo também é um bom negócio. O melhor da vida é isso e ócio"
(Zeca Beleiro)

As mais perfeitas ferramentas
Fábrica de Sorrisos

Dos seus doze anos, os últimos seis se passaram naquele quarto. Da janela via as crianças da rua brincando de pega-esconde, fazendo estrepolias em suas bicicletas, jogando as peladas gritadas e corridas. Acostumara-se também a vê-las comparando suas miniaturas feitas com palitos de picolés ou de fósforos, carrinhos de metal que ninguém diria que um dia foram latas de óleo ou de leite. Quando via a garotada da vizinhança com seus brinquedos coloridos o coração se alegrava, era orgulho ver os brinquedos que sua mãe vendia trazerem tanta alegria.

Graças à talidomida que sua mãe usara para curar-se da hanseníase, Jerônimo, caçula de três irmãos, nascera com sérias deformidades físicas. Seu sistema cognitivo, porém, não sofrera qualquer dano. Aos seis anos, quando saia de casa com a mãe, abandonada e desassistida pelo marido advogado após seu nascimento, para ir ao médico viu-se apontado pelos vizinhos, caçoado por aqueles meninos que bem poderiam ser seus colegas de escola e de brincadeiras. Desde então resolveu jamais sair de casa outra vez e resumiu sua casa àquele quarto.

Seus dois irmãos, bem mais velhos, estavam às portas da faculdade, trabalhavam de dia, estudavam à noite e arrumavam tempo para dar aulas a Jerônimo. A mãe, economista que abandonara a profissão, vira-se na necessidade de pôr em prática seus conhecimentos acadêmicos e passara a negociar os brinquedos de material reciclado com lojas do comércio local, nas feiras de artesanato e começava a exportá-los para a Europa e Japão, onde eram muito bem recebidos e prometiam render uma grande melhora para a família.

Miniaturas de monumentos como a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo ou o Cristo Redentor, de automóveis em escala perfeita como Ferraris, Fusquinhas, ônibus, de pontes, edifícios, bonecas de pano, iô-iôs de tampas de vidros de azeitonas, buquês de margaridas de papel e plástico, serpentes de rodelas de cabos de vassoura, tantas eram as criações, tão originais e tão bonitas em suas muitas cores que o sucesso era inevitável, mesmo em tempos de vídeo-games e internetes.

Na casa de dois pavimentos, o único bem material que sobrara do malogrado casamento, dois quartos superiores foram fundidos em um, o quarto de Jerônimo. Nas paredes dezenas de fotografias de lugares magníficos, construções fantásticas, máquinas das mais diversas utilidades. Encostada em toda a extensão de uma das paredes, uma enorme bancada sustentava dezenas de ferramentas, metais, plásticos, madeiras das mais variadas formas e tamanhos, sementes coloridas, panos, agulhas, linhas, arames... Naquele pequeno universo o pequeno Jerônimo fabricava a alegria de centenas de pequenos como ele. Muitos deles os mesmos que lhe trataram como uma aberração.

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Se o lazer está atrapalhando seu trabalho, abandone o trabalho.


'Thetis Takes Achilles from the Centurion Chiron' (Batoni, 1770)
Insone

Duas da manhã. Ele já fumou, ligou e desligou a televisão dezenas de vezes tentando assistir a um daqueles filmes medíocres da madrugada. Depois de passear por todos os canais, tentou se concentrar no menos pior de todos, olhos abertos sem ver nada, os ouvidos não ouviam os diálogos ou sequer a trilha sonora. Quando deu por si, passavam-se os créditos finais. Não havia paciência para um outro filme.

Levantou-se e foi em busca de algum entretenimento na geladeira. Além de água, carne congelada, geléias sem nada para acompanhar e alguns legumes. Ficou apenas com um copo com água.

Da cozinha para o banheiro. Urinou, enquanto lavava as mãos ficou olhando aqueles olhos vermelhos no espelho. Vermelhos de cansaço e do choro mal contido. Tentou distrair-se tirando cravos do rosto, mas não achava cravos. Aparou ou pelos das narinas, fez a barba, tudo sem qualquer pressa. Não passaria o gel após barbear, o ardor o faria despertar ainda mais.

A janela do apartamento sempre aberta o recebeu para olhar a rua deserta e molhada da chuva melancólica que ainda caia. Mais um cigarro enquanto observava as gotas prateadas pela luz do poste empoçarem-se entre os paralelepípedos. Ao longe apenas um ou outro latido, até os cães de guarda se recolhem em noites molhadas.

Depois de jogar a bituca fora, pôs-se a observar a entediante dança da água. Talvez aquilo funcionasse como contar carneirinhos e ali ficou, tentando hipnotizar-se por algum tempo. Escorado no batente da janela viu a chuva cessar e continuava desperto, mas agora sentia cansaço nas pernas.

Ligou o computador, leu os sites de notícias, abriu as caixas de correspondências que já sabia vazias, somente alguns spnas devidamente apagados sem serem lidos. Tentou algum jogo que o divertisse, mas, àquela hora, todos lhe pareceram imbecis.

Só ele e as muriçocas acordados. Nem o apito enervante do vigia da rua se fazia ouvir.

Percebeu que a sala já iluminava-se das cores do dia. Arrependeu-se de não ter tomado aquele cafezinho à noite com medo que a cafeína lhe tirasse o sono. No fundo sabia que o que não lhe deixaria dormir, como nas duas noites anteriores, seriam as lembranças de Gilda.

Seu estoicismo não poderia mais resistir. Seu peito comportava-se como uma panela de pressão que tinha a válvula entupida e a pressão interna encontrava-se perigosamente alta.

Rendeu-se ao que deveria ter-se rendido havia três dias. Em poucas linhas escreveu toda a sua dor e saudade num e-mail para ela. Imediatamente após enviar a correspondência eletrônica sentiu um enorme alívio e o sono veio com o peso de uma bigorna.

domingo, dezembro 11, 2005

- Alô.
-Alô.
- Eu queria falar com a Mariana.
- Eu queria falar com a Mariana.
- Alô?
- Alô?
- Você é louco?
- Você é louco?
-Idiota!
- Idiota!
Tu... tu... tu...


Família cabocla
Sossego

Gumério lançou o anzol, esperou, esperou, esperou, sentiu a fisgada, puxou a linha, perdeu a isca e o peixe.

Colocou a segunda minhoca enquanto pensava na mulher grávida e nos cinco pequenos que esperavam em casa pelo que comer.

Faz o arremesso e, enquanto espera, põe-se a matutar sobre o que poderia ter feito diferente. Não se arrependia de ter roubado Everânia da casa dos pais. Era uma boa mulher, trabalhadeira, cuidava bem dele e dos pirralhos, não reclamava da vida. Eles não ouviam muito falar nesse negócio de amor e paixão e nem tinham afetos desnecessários, apenas se gostavam e gostavam de estar juntos.

Se tivesse aceitado aquele emprego de ajudante de pedreiro em Altamira as coisas estariam melhores? As notícias que recebia do seu irmão Glicério diziam que não. O salário de fome tinha que ser dividido com o aluguel do barraco e o sustento dos três filhos. A cunhada de Gumério não tinha tempo de cuidar das crianças. Para ajudar o marido arrumou um emprego na casa dos outros. Cuidava dos filhos alheios enquanto os seus ficavam sozinhos em casa.

Palafita amazônica
Tirando os problemas de comida, os outros ele não tinha. Sua palafita era sua, não devia nada a ninguém, Everânia tinha todo o tempo para eles, as coisas da casa e suas crias, não dependia de carregar tijolos oito horas por dia para receber uma miséria maior do que a em que vivia.

Quando a chuva era boa não faltavam o abacaxi, o feijão, a macaxeira e o jerimum, plantados no eito, para saciar a fome. Havia sempre a esperança de um bom peixe ou uma caça. A piroga era seu transporte até a vila onde podia vender o que produzia e não comia ou trocar por roupas ou querosene para a lamparina.

Não era a seca de hoje que o desanimaria. Deus proverá!

Só uma coisa o assustava, a doença. No remo ele levava mais de três horas até o posto de saúde e nem sempre o doutor estava lá. O mosquito da malária, que eles enxotavam à boca da noite queimando bosta de vaca, vivia em qualquer fresta e não poupava ninguém. Rezava todas as noites e todas as manhãs pedindo aos céus que os insetos não picassem seus filhos e tem sido atendido.

Reclamar? Não, não tinha motivo. Aquele céu que em noite sem chuva lhe parecia um festival de vaga-lumes, o barulho das águas que não parava e que parecia lhe emitir vozes, a bicharada que lhes servia de alimento para o estômago e para os olhos, a família que lhe dava consolo e ânimo, a força para trabalhar e o facão afiado... Não tinha do que reclamar.

Com um sorriso de satisfação já não maldizia o peixe que insistia em lhe roubar as iscas. Uma hora um tambaqui mais bobo cairia na armadilha.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

Quer deixar o(a) seu(ua) ex irritado(a)? Mostre-se feliz.
.


E tome caixinha!
Caixinha

Vem o Natal e com ele as caixinhas.

Hoje ao chegar em casa encontri a seguinte mensagem, num papelzinho amarelo, 10 X 15 cm em minha caixa de correspondências:

Qualquer feito, grande ou pequeno, começa com uma decisão certa :EU VOU CONSEGUIR"
Feliz Natal
CAIXINHA DO GARI
Dia 14 de dezembro de 2005

Apoio: GRÁFICA GLOBO
(73) XXXX-6151

Vamos por parte:

1. A decisão certa: "EU VOU CONSEGIUR", em letras garrafais e negrito. Subtexto: "você vai deixar uma graninha pra mim e meu Natal terá uma Sidra Cereser e um peru". Eles são otimistas, têm iniciativa e sabem fazer marketing. Muito bem, gostei disso.

2. "CAIXINHA DO GARI". Essa instituiçaõ, não a dos garis, mas a da caixinha, é antigüíssima! Desde que me entendo por gente elas sempre existiram e não hão de morrer. Existe a do engraxate, do flanelinha, do carteiro, do florista, do balconista, do padeiro... Você não é obrigado a contribuir, lógico, mas sempre ficamos com o pé atrás. Se não der minha contribuição, esse cara vai se lembrar de mim e retaliar na primeira oportunidade? Eu não confiaria nos flanelinhas, por exemplo. Melhor morrer em cinco reais na caixinha do quê em duzentos na repintura do carro. No caso espeífico do meu gari, pagarei com prazer. Tenho sido muito bem servido. Quando o último prefeito não se reelegeu, a primeira coisa que fez foi deixar de pagar a empresa de limpeza urbana. Por três semanas a cidade virou um único aterro sanitário. Os leitores de um ano devem lembrar-se que organizei um mutirão com os vizinhos e bloqueamos a principal avenida do bairro com todo o lixo de quatro quarteirões, a maneira mais eficaz que encontramos para termos nossas sobras recolhidas. De lá pra cá o atendimento tem sido exemplar. Nossos garis merecem a colaboração.

3. "Dia 14 de dezembro de 2005". Mais uma prova da organização deles. Tendo dia e hora marcada, não precisarão bater à porta de cada um esperando a grana. Todo mundo já sabe quando passarão. Receberão tudo no mesmo dia, o que facilitará o rateio entre eles e o planejamento de cada um para gastar sua parte.

4. "Apoio: GRÁFICA GLOBO". Levando-se em conta que Eunápolis tem 23.000 residências cadastradas, se cada uma recebeu um lembrete desses, significa que a gráfica gastou, pelo menos 34,5 metros quadrados de papel, mais a tinta, energia e mão de obra na preparação desse brinde. Isso perfaz algo em torno de vinte reais brutos. Se desse vinte reais para a caixinha, seria muito pouco. Dando 23 mil santinhos alcançoua cidade inteira, fez propaganda gratuita e ainda ajudou toda uma categoria profissional. Nada mal.

5. "Feliz Natal". Feliz Natal para cada um deles e para cada um de nós também.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

"All we need is love"
(John Lenon)

Inesquecível
25 anos

Me lembro bem. Estava saindo para a escola, estudava à tarde. Minha mãe assistia ao telejornal do meio-dia. De passagem pela sala ouvi a Leda Nagle anunciar o assassinato de John Lenon. Aquilo me petrificou.

Não sou fanático por nada ou ninguém, não tenho idolatrias e chego mesmo a ser iconoclasta vez por outra, mas algumas poucas mortes de famosos me deixaram para baixo e a de Lenon foi uma delas.

Quando guri via meus irmãos mais velhos aprendendo a tocar Beatles no violão ou na escaleta, ouvia-os discutindo com os amigos sobre letras e a aparência do quarteto, acompanhava a infinita disputa entre os seguidores de Lenon e MacCartney sobre quem era o melhor, qual era o gênio do grupo, os defensores de George Harrison o julgavam injustiçado. Nessa efervescência, que dura até hoje e promete durar muito mais, passei a escutar as músicas da banda e os discos solo, conheci a banda Wings, de Paul e Linda, e a obra de Lenon sem a banda. Procurava traduzir as letras das músicas de que mais gostava com meu inglês paraplégico.

Algumas dessas músicas me parecem diferentes cada vez que as ouço, talvez seja efeito da melhoria da qualidade dos cds e dos cd-players, o fato é que a obra de John me parece renovada a cada dia.

Ouvir a música em que Milton Nascimento chora o assassinato do ídolo ainda me traz lágrimas.

Pouco me importam os zilhões de livros, filmes, reportagens de jornais ou revistas que tentam destrinchar a vida de John, as fofocas pró e contra o homem que foi, o que me interessa é a obra, única, linda e criativa que, pela própria impossibilidade, nem Chapman nem Michael Jackson ou quem quer que seja jamais destruirá. Mesmo que eu fosse o único no mundo, o que, ainda bem, não sou, muito pelo contrário, John Lenon continua vivo, muito vivo, mais vivo que muitos de nós, aguçando nossa sensibilidade.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

"Inútil dormir, a dor não passa"
(Chico Buarque)



O ciúme dói nos cotovelos, na raiz dos cabelos, gela a sola dos pés. Faz os músculos ficarem moles e o estômago vão e sem fome. Acende uma luz branca em seu umbigo, você ama o inimigo e se torna inimigo do amor.

O ciúme dói do leito à margem, dói pra fora da paisagem, arde ao sol do fim do dia. Corre pelas veias na ramagem, atravessa a voz e a melodia.


Dor de Cotovelo, Caetano Veloso



Quem costuma vir aqui deve estar estranhando eu postar letra de música, mas, acreditem, embora tenha quatro textos prontos e mais dois em montagem para postar aqui, hoje só me vem isso à cabeça. Amanhã estará tudo no lugar, prometo.

terça-feira, dezembro 06, 2005

"Quem não acredita em mula sem cabeça é porque nunca olhou em volta."
(Millôr)



Av. Porto Seguro
Daqui não saio

Tirando o período da minha primeira infância, sempre morei em capitais. Tudo muito longe, tudo muito difícil, desconhecidos em todos os lugares... Essa impessoalidade no trato com as pessoas varia de lugar para lugar. No Nordeste e no Norte as pessoas são mais afáveis, mais pré-dispostas a aceitarem novas amizades, enquanto que no Sudeste e no Sul o quase todo mundo lhe é quase um desconhecido.

Um amigo meu, nascido em Vitória e criado no interior baiano foi para São Paulo estudar. De férias por aqui estava me falando das dificuldades de adaptação. Num balada com os amigos da faculdade, quase todos com carro, na hora que começou a dispersão, cada qual tomando seu rumo, havia apenas aquela despedida, algumas mais efusivas, mas frias para seu costume nordestino. Naquela hora percebeu que não sabia onde os amigos moravam, quem eram seus pais, de que viviam. Ninguém oferecia carona para ninguém, no máximo um abraço e um "até amanhã". Lógico, esse foi um caso separado, mas esse tipo de relato é comum a gente ouvir.

A cidade grande afasta as pessoas. Mesmo seu vizinho de porta é um desconhecido.

Depois de cair numa cidade de interior, de onde não pretendo sair mais, essas diferenças me ficaram mais claras.

Dia desses fui a uma farmácia e a atendente, uma garota de seus dezoito anos que eu já vira algumas vezes, mas de quem sequer sabia o nome, me recebeu como a um velho amigo e me tratou de Marcos como se fôssemos íntimos. No supermercado, ao passar um cheque, a caixa manda chamar a responsável para que ela dê o visto. Quando essa moça, que sequer conheço, vê que sou eu nem vai até lá colocar o "ok" no documento, apenas dá um sorriso e faz um sinal afirmativo para a garota que está me atendendo. Fui ao restaurante e na hora de pagar a conta percebi que havia esquecido a carteira em casa. O gerente nem se amofina. "Assina a nota, Marcão, quando puder passa aqui e acerta." E essas coisas não acontecem só comigo. Coisas assim se dão porque todos sabem quem são todos, mesmo numa cidade de mais de cem mil habitantes. Cada um de nós tem uma referência, uma identidade. Não somos apenas mais um na multidão.

Mesmo que não tenhamos consciência disso, cada um quer ser único, até quando se veste igual a todos de sua tribo, já que a moda manda fazer isso. Quando somos tratados assim, como ser com identidade e gostos próprios, nos sentimos especiais. Somos especiais quando somos nós mesmos, interessante isso.

Hoje ao chegar em casa para almoçar, encontrei o Edney, ex-aluno meu numa escola estadual, tocando minha campainha.

- Falaí, Ney. Tudo beleza?

- Marcão esse fio aqui é do teu telefone?

Percebi que ele estava com o fio enrolado na mão. Como moro num prédio com cinco apartamentos, não podia garantir que era o meu.

- Peraí, Ney, deixa eu checar.

Entrei em casa e percebi que meu telefone estava mudo.

- É, Ney, é o meu.

- Um caminhão passou aqui e arrebentou o fio. Eu estava indo pra casa almoçar e aí vi o fio no meio da rua e vim ver se era o teu.

O rapaz trabalha numa empresa que presta serviços à Telemar.

- Pode ficar tranqüilo, Marcão. Eu vou almoçar e na volta eu passo aqui pra consertar. Me diz teu número pra eu testar lá na central.

Qual a probabilidade de isso acontecer numa capital? Quanto tempo levaria para meu telefone ser consertado se eu tivesse que ligar para a Telemar e passar por aquelas musiquinhas, mil transferências, duas mil e uma perguntas e um número de protocolo?

Às duas e meia eu já estava podendo falar com o mundo de novo. Sair do interior? Jamais!

segunda-feira, dezembro 05, 2005

1: Aí o timão...
2: Margaridas.
1: Hein?
2: Violetas.
1: Comequié?
2: Azaléias.
1: Que papo é esse?
2: Crisântemos.
1: A gente tá discutindo futebol e você vem com esse papo de jardineiro...?
2: Pra não dizer que não falei das flores.


Eu sou normal?

Algo muito fora do normal deve estar acontecendo comigo. Para cada lado que me viro vejo gente preocupada, com mil problemas pra resolver. Sejam problemas emocionais, solidão, doença da família, dívidas impagáveis, crises existenciais... Todo mundo carregado de problemas. Os que não têm procuram, superlativam algum contra-tempo e os transformam em dramas.

A vida está sendo observada com lentes grossas e em cores fortes. Vejo pessimismo em cada canto. Na net, por exemplo, é comum encontrar os auto-intitulados filhos de Murphy. Chororô de derrotados.

Os planos estão sempre sujeitos a interferências, mas isso não é culpa do zodíaco, de olho grande, de má sorte, numerologia ou qualquer cabalaa, mas dos próprios planejadores, na grande maioria das vezes. Planejamos mal, não contamos com a enorme gama de fatores interferentes e aí, quando as coisas não dão certo, procuramos um bode expiatório nos isentando de qualquer culpa. O responsável é sempre o outro. Puro escapismo e egocentrismo.

Agindo assim gastamos mais energia alimentando o drama do que resolvendo problemas.

Estamos mais para enteados da hiena Hardy do desenho animado do que para filhotes de Murphy.

Essas coisinhas me fazem me sentir diferente da maioria. Tenho percalços, mas não tenho problemas. Tenho excesso de soluções. E isso há muito tempo.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

O pc está indo para o doutor, de novo (acho que estão me roubando). Volto na segunda com a maior síndrome de abstinência. Divirtam-se sem mim e tenham um ótimo final de semana.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Milagre é o que não se consegue explicar



Senhoras e senhores, o mestre
O Pupilo e o Mestre

Depois de cinco aulas Odacílio, o mestre, deixava o pequeno Luzílio fazendo os exercícios sozinho na enorme sala do casarão e ia para o estúdio onde preparava seus arranjos, lia as novas do mundo dos recitais, escolhia o repertório de sua próxima apresentação, analisava as melhoras ou não da turma do conservatório.

O pupilo, já acostumado com os calos nas pontas dos dedos e a dormência provocada pela repetição infinita de cada posição, tomava mais e mais gosto pelo violão. Não reclamava, não choramingava como seria comum em garotos de doze anos como ele.

O pé direito muito alto, as paredes largas, o soalho de madeira corrida e o silêncio da rua ajudavam na acústica, fora isso havia a vantagem de, numa casa tão grande, não serem perturbados pelos barulhos da cozinha ou da máquina de costura de dona Eflúvia, mãe do Odalício.

Na penumbra do enorme quarto, transformado em sala de música, o menino Luzílio, absorto no instrumento, sentiu-se observado. Assustado olhou para a direita e viu um senhor todo de preto, numa camisa de malha com mangas compridas e gola alta. Com as mãos cruzadas sobre a coxa que estava sobre a outra nas pernas cruzadas, o homem de cabelos grisalhos nas têmporas, bigode também grisalho, tinha um leve sorriso, o que ajudou o garoto a se tranqüilizar.

- Não pára, Luzílio! Continua!

Odalício gritou do estúdio ao perceber a interrupção dos sons do violão. Com um gesto de mão e um acenar de cabeça o senhor grisalho sinalizou para que o aluno continuasse os exercícios.

Ao final da aula Luzílio procurou o simpático intruso, mas não o viu mais. Imaginou ser algum outro professor, amigo de Odalício, e não deu atenção ao fato.

Nos dias seguintes, porém, o homem de negro voltava a aparecer. Na mesma posição, com o mesmo sorriso, nos mesmos trajes, restringia-se à condição de observador.

Um dia foi dada a Luzílio uma lição bem mais difícil que unia velocidade nos toques e posições alternadas bastante complicadas. O garoto penava, suava, não estava dando conta da tarefa. Olhou para o lado e lá estava o misterioso visitante com uma craviola no colo. Luzílio parou o exercício e pôs-se a obervar o agora íntimo espectador. O senhor grisalho, com o indefectível sorriso, lentamente foi executando a tarefa dada ao aprendiz. Fez uma vez, olhou para Luzílio e fez sinal para que repetisse. Assim se alternaram. O homem fazia uma vez, o garoto outra, novamente o homem, de novo o garoto. Ao final da aula, Luzílio executou sozinho e com desenvoltura todo o movimento por três vezes seguidas, para o espanto do mestre Odalício.

Com o passar dos dias essa troca entre o garoto e o calado professor foi ficando mais contumaz. Odalício dava a missão e se retirava. Luzílio tentava algumas vezes e o senhor de negro o ensinava a maneira mais fácil e correta.

Assim se passaram seis anos, até o dia em que o jovem fez o concurso para o Conservatório, sendo aprovado. Odalício despediu-se do rapaz, satisfeito com o tanto que fizera para torná-lo um bom instrumentista. Sequer imaginava que o verdadeiro mestre jamais se apresentara.

No primeiro dia de aula, ansioso Luzílio chegou cedo à escola de música. Para aquietar a inquietação, saiu pelos corredores conhecendo o ambiente, também um casarão do final do século dezenove. Salas grandes, paredes altas e grossas, portas enormes e corredores de soalho absurdamente compridos.

Em um dos salões viu, distribuídas pelas paredes, dezenas de fotografias de grandes instrumentistas do passado. Sem pressa saiu olando uma por uma. Ao colocar-se em frente a uma delas sentiu um arrepio subindo-lhe pela coluna até eriçar os pelos da nuca.

A foto mostrava aquele senhor que o acompanhara e ensinara por seis anos na casa de Odalício. Os mesmos cabelos grisalhos, a mesma roupa negra, o mesmo sorriso suave, a mesma craviola. Uma plaqueta dourada o apresentava: "Paulinho Nogueira, 1929-1996".



Reescrevi esse texto três vezes, mas ainda não consegui deixá-lo como queria. Quem sabe um dia...

quarta-feira, novembro 30, 2005

Águas passadas não movem barquinhos.


A Felicidade Pode Esperar

Selvana sentou seus setenta e cinco anos de idade e cinqüenta de espera naquele banco de praça à sombra da mangueira. Ainda faltavam duas horas para a hora marcada do encontro, mas a ansiedade a impelira.

Não via Silas desde o dia em que ela recebera as rosas roubadas do jardim da igreja que Adamastor lhe oferecera. Seu Sidônio, o pai, alagoano plantador de fumo em Arapiraca, não admitia sua filha dar trela para o almofadinha da capital. Mesmo Selvana tendo já vinte e cinco anos e sendo a única da prole ainda solteira, a despeito de seus dons de dona de casa, sua beleza morena acima da média das moçoilas do lugar, os ciúmes do pai não permitiam que lhe fizessem a corte. Depois de ter expulsado dois pretendentes com uma peixeira em uma das mãos e o reino na outra, os rapazes evitavam olhar a prendada Selvana.

Irascível, seu Sidônio enviou a filha para a casa da madrinha em Cabrobó. Dona Eudócia, bem mais liberal, incentivava o embelezamento de Selvana com carmim e pó nas faces, vestidos mais curtos, dança na quermesse, quadrilha no arraial, onde ela conheceu Baltazas, com quem casou-se e viveu feliz por trinta e sete anos.

Do casamento nasceram Berenice, Brasilino e Bosco. Os filhos casaram-se, o marido faleceu e ela mudou-se para um sítio fora da cidade com as comodidades modernas, a companhia de dona Jucimara, empregada tão antiga que tornara-se irmã, e as visitas de Bosco, que lhe comprara um computador e lhe ensinara a comunicar-se com o mundo através da grande teia.

Se tornara uma velhinha moderna com MSN e Orkut, talvez a decana dos usuários. Nessas aventuras internéticas descobriu a comunidade da família Verçosa e nela o Silas Verçosa Neto, a quem adicionara como amigo e aos poucos foi-lhe conquistando a confiança e trocando confidências. Assim descobrira que o jovem era neto do Silas que esperava agora.

Trêmula de ansiedadae, não sentia o calor da tarde ensolarada, não ouvia os gritos dos vendedores ambulantes, apenas os olhos estavam vivos e ao ritmo do coração, procurando em cada canto ao seu redor um velhinho qualquer que ela sabia difícil de reconhecer. Sabia que ainda faltava muito tempo, aquelas duas horas eram mais demoradas que os últimos cinqüenta anos. Tinha medo de não conseguir esperar mais. O peito acelerado recebia doses extras de oxigênio quando inspirava fundo, na tentativa de acalmá-lo.

Um leve toque no ombro a trouxe para perto quando escarafunchava a distância com o olhar cansado.

- Selvana?

O velhinho de camisa de algodão branca impecável por dentro da calça de tergal cáqui, cinto marrom, elegantes óculos de aros grossos e lentes bifocais, sapatos lustrados e brilhosos, inspirava respeito e serenidade.

- Silas?, mal conseguiu balbuciar.

Levantando-se automaticamente abraçou o irmão que lhe restara, abraço demorado e carinhoso regado de lágrimas de quatro olhos. A sublimação do carinho.

Sem palavras, deram-se o braço e saíram caminhando na certeza de que aquele seria o Natal que todo aquele tempo não permitira acontecer.

terça-feira, novembro 29, 2005

Quem vive de memórias sofre duas vezes.


Passado É Coisa do Passado

- Amor, olha essa foto.
- Onde foi isso?
- Não lembra?
- Não.
- Amor! Foi naquela excursão à serra gaúcha!
- Ah!
- ...
- Quando foi isso?
- Não acredito! Tá tirando com a minha cara?
- Que isso meu bem? Eu não lembro, só isso.
- Nosso primeiro ano de casamento, Astrogildo. Como pode esquecer isso?
- Se estamos no sétimo, é lógico que tivemos o primeiro, mas também tivemos mais seis. E foram todos muito bons, não foram?
- Vai me dizer que não se lembra disso também...
- Ora, amor...
- Lembra onde comemoramos o segundo?
- Fortaleza?
- Fortaleza? Esse foi o quarto!
- Chapada Diamantina.
- Nunca fomos à Chapada Diamantina! Tá louco?
- Ih! Então, não lembro.
- Manaus, Astrogildo! Manaus!
- Ah!, foi...
- Vai dizer que não lembra...
- Lembro de um calor de sauna e muita água.
- E fomos com quem?
- Com o Clodoaldo?
- Clodoaldo? Que mané Clodoaldo?
- Ah!, é. Não te apresentei o Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Quem é Clodoaldo?
- Sei lá! Você que falou nesse tal Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Você tá bêbado, Astrogildo? Quem é Clodoaldo?
- Sabedeus. Não conheço nenhum Clodoaldo, Suméria.
- E como é que perguntou se fomos a Manaus com o Clodoaldo?
- Chutei, ué.
- Eu tô casasa há sete anos com um maluco e não sabia.
- Com quem fomos a Manaus em nosso terceiro aniversário?
- Segundo!
- Segundo? Quem é Segundo?
- Segundo aniversário, desgraçado!
- O que tem o segundo aniversário?
- Nós fomos a Manaus com o Cleócio e a Vilda em nosso segundo aniversário de casamento, seu beócio.
- Ah, foi!.
- "Ah, foi!, "ah, foi"... Você não lembra, confessa.
- Não lembro mesmo.
- Como é que você não lembra coisas tão importantes que nos aconteceram, seu maldito?
- Porque eu penso nos muitos anos que ainda vamos viver felizes. Porque vejo nosso amor em perspectiva, não em retrospectiva.

segunda-feira, novembro 28, 2005

O que difere uns de outros: Morrer é fácil, difícil é viver.



Cansaço

Na sala um sofá e uma poltrona de um mesmo conjunto, mas diferentes no uso. Enquanto o sofá aparentava nunca ter sido usado, a poltrona se mostrava gasta, o molde perfeito de um corpo em suas almofadas puídas. Na estante, de Joyce a Paulo Coelho, centenas de livros manipulados, tirinhas de papel, aos milhares, saiam de cada volume com pequenas anotações.

Os móveis antigos contavam a história de suas vidas, a do morador e a de seu pai, de quem os herdara. A segunda estante, a que ele chamava de estante de som, sustentava um antigo aparelho três em um do qual jamais se livraria. Nele eram ouvidos os muitos discos de vinil de Dolores Duran, Pixinguinha, Yes e Edu Lobo, entre os mais de quinhentos títulos. Aquele aparelho tocava as inúmeras fitas cassete de sua infância, as mesmas fitas que seu pai ouvira tantas vezes no Corcel 74.

No quarto se via a cama de solteiro com um velho colchão de molas e roupas de cama gastas, sempre desarrumadas. Sobre ela uma toalha de banho molhada. Uma estante de madeira de lei abrigava exemplares e exemplares de revistas velhas e uma tevê sintonizada num canal popular.

Ainda escorria a água do último banho pelas paredes, cortina e chão do banheiro de portas abertas que recendia o cheiro enjoativo do sabonete barato.

Sobre a mesa da cozinha uma folha de papel ofício com umas poucas palavras escritas em tinta de esferográfica: "Não há motivo, não há culpado, assim como nunca houve razão antes disso".

Nu, ajoelhado diante do forno onde enfiara sua cabeça depois de abrir o gás, dormia eternamente o corpo amarelado do dono de tudo aquilo.

domingo, novembro 27, 2005

Domingo no Parque

Na tarde preguiçosa e domingueira a menininha brinca, sozinha no balanço.

A cidade se espreguiça em volta da praça onde o pai, sozinho em um banco, lê seu jornal sem interesse. Ela, no carrossel, gira com seu vestido florido.

Até os alienígenas pardais se demoram a catar suas migalhas, enquanto a menina e seus cabelos negros em maria-chiquinha escorrega a bunda e cai de pé na areia pisada e repisada, antes branca, hoje marrom de uso.

Ao longe se ouve um samba. Algum botequim ainda vive na tarde morna em que a menininha tira as sandálias para sentir-se mais livre para escalar o brinquedo de canos. O pai, ausente, lê o caderno de esportes.

Sua mãe, em casa, prepara o suco e o bolo, vontades expressas da menininha para a merenda da tarde. A guria, sem coleguinhas, maquinava um jeito de divertir-se sozinha na gangorra.

Companhia ausente, o pai fazia caretas ao ler as novas da política e não via a menininha de maria-chiquinha, descalça, em seu vestido florido correr atrás da borboleta e não conseguir chegar ao outro lado da rua, impedida pelo carro cinza e veloz.

A menininha não viu a segunda-feira.

sexta-feira, novembro 25, 2005

"Nacionalidade" refere-se ao país em que se nasceu.
"Naturalidade" refere-se ao estado em que se nasceu.
Que substantivo refere-se à cidade em que se nasceu ou mora?




Tem texto meu no blog da Chris.


O texto abaixo participa do ponst comunitário proposto pela Micha.




Traição

A traição, hoje até estimulada por alguns meios, tabu há bem pouco tempo, punível com chicotadas ou apedrejamento em alguns lugares, já passou ou passa pela cabeça da grande maioria de cada um de nós.

Tive minha fase galinha que durou um ano e não me orgulho nada disso.

A vítima foi a Jandira. Não riam, o nome dela é esse mesmo. Uma pessoa maravilhosa, linda, sensível. Fazia economia e foi no campus que nos conhecemos. Ela com sua turma, eu com a minha (época desgraçada em que acreditamos que só somos alguém se tivermos uma turma) nos encontramos no forró que tinha no Vadião da universidade todas as sextas-feiras.

Rolou um clima. Praticamamente não dançamos. Foi aquele papo de horas em que um tenta impressionar o outro, ou seja, quando ambos estão afim, mas tão afim, que não quer que se resuma a uma noite.

A partir dali virou namoro e estava tudo muito bem. Mas havia a Cydia, outra pessoa fantástica. Nunca havia rolado nada entre nós, embora eu tentasse e tentasse. Mas o bicho mulher fêmea do sexo feminino tem uma coisa esquisita. Das duas uma: ou cultiva um espiríto de competição totalmente irracional entre outras da mesma espécie ou simplesmente não aceitam se verem preteridas. O fato é que nos cortam, dão as costas, esnobam quanto mais nos esforçamos para conquistá-las. No dia que desistimos, se ficarmos sozinhos, tudo bem, mas se aparecermos com outra, logo a que antes era objeto de nossas atenções e investidas se enciuma e começa a nos dar bola.

A Cydia não fugiu à regra. Dois anos de tentativas frustradas, mas bastou saber que eu estava namorando a Jandira, passou a me visitar em casa, chamar para sair, convidar para uma cervejinha num barzinho novo muito legal e por aí vai. Não resisti e caí matando. Não ia perder a oportunidade que procurara por tanto tempo, ainda mais assim, oferecida em papel de presente.

No dia seguinte a Jandira já sabia. Claro, tem sempre alguém pra vigiar a vida alheia, quase sempre aquele ou aquela frustrado(a) por não ter ninguém.

Eu gostava da Jandira, mas ela já estava apaixonada. Rompeu, xingou, me bateu. E os mesmos línguas de trapo faziam questão de vir contar como ela ficara mal. Não tentei a reconciliação, sabia que fizera uma merda muito grande. Troquei a economista pela bióloga e, pior, elas não se gostavam desde muito antes. O romance com a Cydia perdeu o gosto, amargou. Daí me joguei na esbórnia. Nada de namoro, nada de paixão. Cada noite ou dia uma e tava bom demais.

Não, não estava nada bom. Aquilo não era pra mim. Dei por acabada minha vida de galinha.

Tempos depois me apaixonei pela Ana Rita. Gatíssima cobiçada que me fez me sentir um Tom Cruise quando me escolheu naquela festa onde havia uma renca de marmanjos cercando-a.

Dois anos de namoro. Tudo muito bem, tudo muito bom, achava eu. Mas a vida é um bumerangue. Turistóloga, Ana Rita trabalhava num grande hotel em Porto Seguro, caiu nas graças de um colega e me traiu com ele. Recebi o bumerangue que atirara bem no meio da testa. Quem com chifre fere, corneado sairá ferido.

De volta às origens, cada vez mais me convenço que ninguém é obrigado a ficar com ninguém e se está, respeito é o mínimo que se deve dar e receber. A traição não é saída, muito pelo contrário, é a boca enorme de um fundo buraco.

quinta-feira, novembro 24, 2005

O que é um claviculário?



Um Funil Estreito

Com a reforma educacional de 1972, promovida pelo então ministro Jarbas Passarinho, o sistema de vestibular como processo de seleção de estudantes para o terceiro grau foi definitivamente instaurado no Brasil. As justificativas eram simples e plenamente aceitas na época. O número de universidades públicas era pequeno; os cursos oferecidos nessas poucas universidades também eram poucos; o vestibular serviria para premiar por mérito, só permitindo a entrada na universidade pública dos melhores alunos. Isso teoricamente, uma vez que era comum o uso de "pistolões" para se conseguir uma vaga. Só mais tarde essa prática tornou-se crime federal.

Nesses 33 anos aumentou a quantidade de universidades federais e estaduais, surgiram até algumas universidades municipais. Com o aumento dessas escolas veio a maior diversificação de cursos de graduação, pós-graduação e especializações. Obviamente, aumentou consideravelmente o número de vagas a serem preenchidas.

Por um bom tempo entrar na universidade era coisa para a elite econômica, uma vez que, logo após a instauração do vestibular, surgiram os cursinhos preparatórios, caros para a maioria dos estudantes. Fortunas, até mesmo impérios educacionais, surgiram a partir desses cursinhos. Paralelamente houve um empobrecimento da qualidade de ensino nos primeiro e segundo graus nas escolas públicas, salvo raríssimas excessões. Os melhores professores iam para as escolas particulares, onde recebiam salários muitas vezes maiores que nas estaduais, federais e municipais, e para os cursinhos. O acesso ao ensino fundamental foi crescendo paulatina e vagarosamente, a começar pelos grandes centros, o que tornava a concorrência cada vez mais acirrada.

Alguns cursos, por conta do status social tinham procura assustadoramente grande, como medicina, odontologia e engenharia, essa por conta das grandes obras que o governo dos generais promovia durante o "milagre brasileiro", e economia, incentivado pelo crescimento recorde que o país promoveu nesse período, tendo Delfim Neto sendo definido como o "super ministro" pela imprensa.

Com o aumento da população e, lógico, maior número de alunos concludentes do ensino médio, o boom dos cursinhos e escolas particulares país afora e o não aumento proporcional de vagas oferecidas nas universidades públicas, permitiram que o ambiente ficasse propício para a explosão em grande escala das universidades particulares. Daí surgiram verdadeiras fábricas de diplomas.

Evidentemente existem faculdades privadas de ótima qualidade, com excelente quadro de professores, diversos doutores, laboratórios e bibliotecas bem equipados, mas existem, em maior quantidade, aquelas que formam seus alunos "nas coxas". O sujeito pega seu canudo, mas não é páreo na hora de concorrer a um cargo por concurso e nem é o primeiro a ser selecionado para um emprego mais bem remunerado.

Tornou-se a salvação para os estudantes com algum poder aquisitivo que não conseguiam uma cadeira nas estaduais e federais, por falta de preparo ou de sorte.

Ao invés de exigir a melhora do ensino médio nas esolas mantidas pelos governos, de aumentar a quantidade de vagas nas universidades públicas, abrir mais escolas de terceiro grau, o governo FHC propôs o sistema de cotas para negros, índios, pobres e oriundos do sistema público de ensino. Fez a proposta e saiu de fininho, deixando a batata quente nas mãos do governo Lula.

Os cursos da moda ainda existem, mas moda passa, acaba na próxima estação, o que faz com que a desistência do alunado aprovado seja muito acima do aceitável. O sistema de cotas nas poucas escolas que as adotaram como norma, também gera uma desistência que poderia ser prevista pelo Ministério da Educação. O jovem passa para odontologia, por exemplo, por ser oriundo de escola pública, mas, dificilmente, terminará o curso por dois motivos principais: 1. Não tinha o conhecimento elementar de química e biologia, matéria base do curso. Após os primeiros fracassos, desistem; 2. Mesmo em universidades públicas é um curso caro, muito caro. São essenciais livros e equipamentos, muitos deles importados, que chegam a custar o que a família inteira do estudante gasta de transporte por mês.

Muito se critica o sistema de admissão por vestibulares, mas não se apresentou nenhuma alternativa mais democrática e justa que ele. O sistema de cotas poderá causar sérios danos dentro de 10, 15 anos depois de serem adotados em todas as universidades públicas. A discriminação contra os cotistas já existe no ambiente acadêmico. Cursos onde o número de formados é apenas um pequeno percentual dos que entraram, principalmente os de engenharia, matemática e física, terão um número ainda menor de profissionais jogados no mercado, o que causará uma carência enorme desses profissionais.

É uma tortura para os competidores? É. É desgastante financeira e emocionalmente para suas famílias? É. Mas não há saída, pelo menos a médio prazo. O que lhes resta? Cabeça fria e dedicação aos estudos. O resto fica por conta da sorte.

quarta-feira, novembro 23, 2005

"Se alguém vender bosta em pó, tem sempre um bobo pra comprar."
(Chico Moura)




Tem texto meu hoje no blog da Chris.



Tá indo novo material para o site do Pedro.




Quem Vai Querer Comprar Banana?

- Quem vai nas coxas... da galinha?
- Abaxaqui, abricu e xeira!
- Seu pamonha! Seu pamonha! Seu pamonha!
- Ô, bonito! Ô, bonita! Cê quer...

O grito de vendedores ambulantes, além de um instumento de marketing eficiente pela criatividade e alegria, é um elemento cultural nacional oriundo dos mercados asiáticos, indianos principalmente, e africanos.

Em toda cidade brasileira esses tipos pobres, sofredores, que não têm sábado nem domingo porque a fome não escolhe dia, são encontrados. Muitas vezes nos passam despercebidos, mas quem admira os trejeitos da cultura popular se encanta.

Já guri eu me divertia cmo o vendedor de quebra-queixo que passava em minha rua por volta das três da tarde. Não entendia o que ele queria dizer naquele seu grito impostado, mas isso não evitava minhas risadas com a velocidade com que gritava:

- Quebra-beijo, quebra-seixo, quebra-queixo!

No decorrer dos anos fui ouvindo mais uns e mais outros. Torcia o nariz para os mais agressivos e para aqueles que, na minha visão pudica de outrora, ofendiam as mulheres acentuando seus atributos físicos. Se eu soubesse o quanto elas gostavam e da existência da enorme porção da personalidade chamada ego, não teria demorado tanto tempo para minha primeira conquista amorosa.

A propósito, o primeiro grito do início desse texto era de um senhor baixinho e barrigudo que andava pelo centro de Eunápolis, umbigo à mostra e uma bacia na cabeça, vendendo coxinhas de galinha. Seu grito era ouvido a distâncias enormes e assustava os distraídos que estavam por perto.

O segundo era de um vendedor de frutas de Belém. Os produtos que vendia? Abacaxi, abricó e macaxeira, que não é fruta, mas tudo bem.

O terceiro é óbvio. O vendedor de pamonha passa sob minha janela há dois anos, sempre entre três e quatro horas da tarde. Um dia eu, de brincadeira, perguntei por que me chamava de pamonha. "Não é o senhor, não, doutor, isso é márquete".

E o quarto é o vendedor de qualquer coisa. Um dia ele aparece com uvas, no outro cocos. Pode trazer limões, cds piratas, meias suspeitas, cartões telefônicos, espremedor de frutas... O que vier ele vende pelas ruas do centro de Fortaleza.

terça-feira, novembro 22, 2005

Dizem que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança.
Dizem que os sentimentos mais nobres o homem guarda na alma.
Dizem que Deus não tem alma.
Devo deduzir que Deus não tem sentimentos nobres?



Deus por um dia

Certo dia Deus deu um faniquito, sabe-se lá por quê, deve estar ficando velho. Procurou um anjo-médico e esse lhe passou um atestado licenciando do trabalho por um dia. O diagnóstico: virose, o que significa que o médico-anjo não sabia extamente de que mal O Senhor sofria.

Depois de bilhões de anos de batente, sem faltar um dia, Deus não sabia como é esse negócio de licença médica, mas sabia que alguém teria que substituí-lo. O mundo não poderia ficar desgovernado esse tempo. Pobre e ingênuo Deus... O mundo está desgovernado há muito tempo. Quem poderia oupar o cargo nas próximas 24 horas? Não havia ninguém à Sua altura.

"Já que o povo da Terra gosta tanto de loteria, vou sortear", pensou Deus. Vendou os olhos, apontou Seu dedo para a Terra e soltou um raio. Eu, que vinha tranqüila, despreocupada e irresponsavelmente caminhando pela rua, recebi aquela descarga bem no alto do cocoruto. Num átmo me senti o sujeito mais poderoso do planeta. O tal raio trouxera implícita a mensagem de que eu estaria no comando do universo pelo próximo dia inteirinho, e aquilo era uma ordem. Peraí! Se eu era Deus, como alguém ousava me dar ordens?

Relevei a revolta inicial, afinal estava realizando um daqueles desejos que qualquer serzinho oriental já imaginou ser digno de.

Por alguns instantes fiquei zonzo com tantas e tantas vozes, nas mais diversas línguas me pedindo coisas, me agradecendo, me maldizendo... Imediatamente entendi porquê a maioria dos pedidos dos mortais não são atendidos. Impossível ouvir alguém direito naquela babel em meus ouvidos.

Podia matar o trabalho naquele dia, a causa era justíssima. Dali mesmo dei meia volta e voltei pra casa. Tranqüilinho na minha cama, descansei uma hora pensando no que fazer. Que obra digna do Divino eu poderia realizar para que o Todo-Poderoso pudesse se orgulhar e marcar a história do universo para todo o sempre? Só um pequeno diazinho... Parecia pouco, mas levando-se em conta que Deus fez tudo isso em apenas sete, claro que em um eu poderia fazer coisa a beça, até mesmo desfazer tudo. É ou não é muito mais fácil derrubar uma casa do que construí-la? Taí! Desfazer tudo!

Na minha segunda hora de "deusado" esterelizei todos os animais terrestres, incluindo os homens e mulheres. Acabou-se de vez aquele papo de "crescei e frutificai". Ficou tudo tão calmo... Nada de berros, urros, miados, trinados irritantes... Desfiz os homens e mulheres logo depois, desfiz as feras, os gados e répteis. Legal! Os maiores criadores de problemas do universo não existiam mais.

Na hora seguinte me dediquei a esterelizar os animais marítimos. Essa bichara provou, no decorrer da história, que só servia para alimentar o corpo e os bolsos dos humanos, não havendo mais humanos não haveria necessidade deles.

Fui ficando cansado com a trabalheira toda realizada em tão pouco tempo, estava precisando dar uma descansadinha, mas não havia tempo. Muita luz, muito calor. Quer saber? Apaguei o Sol, a Lua e as Estrelas. Parei com esse negócio de noite e dia, mês e ano.

Só que não sou morcego. Nos primeiros passos naquela escuridão dei de cara numa árvore. Ficou um enorme galo divino na minha testa e doeu pra burro! É eu podia falar isso que os burros não existiam mais, não poderiam se ofender. Mas árvores haviam e estavam me machucando. Dediquei uma hora a desfazê-las, todas, desmatando mais que madeireiro capixaba. Limpei o planeta de tudo quanto é tipo de árvore.

Legal, o ambiente estava ficando ideal. Sem barulho, sem gente chata, sem calor, sem frio, sem choro de crianças, sem eco-xiitas, sem políticos safados, sem animais perigosos, sem árvore no meio do caminho... Ploft! Em minhas divagações, enfiei o pé numa poça de lama. Sabia que havia esquecido alguma coisa, a água!

Mais uma hora de serviço. Passei esse tempinho passando rodo e pano em toda a superfície, retirando toda a água. Descriei a água.

Fiquei em pé, sozinho sobre uma bola de areia enorme, sem qualquer utilidade. Então pra quê ficar com aquele monstrengo atrapalhando o trânsito. Quer saber? Desfiz a Terra.

Sem ninguém em que mandar, nada a gerenciar, não havia qualquer coisa para Deus fazer. Bem que eu poderia me desfazer também, mas dizem que esse negócio de suicídio leva a gente pro inferno. Sei lá se aquele ambiente é aquele horror todo que dizem... Melhor não arriscar.

Procurei um cantinho confortável no Éter, me recostei e resolvi descansar mais um pouquinho. Me restavam dezessete horas de "deusado" e não havia nada o que fazer. Não havia gente em quem mandar ou amedrontar, nenhum elemento a gerenciar, terremoto, maremoto ou qualquer outro flagelo pra criar... O ócio era o que me restava. Dezessete horas de ócio nada criativo.

Caí no sono e só acordei sete dias e dezessete horas depois e estava tudo do jeitinho que estava antes do raio divino me atingir. Acho que o Senhor não gostou nadinha da minha "desobra".




Isso aí de cima faz parte do concurso interno da comunidade Blogueiros Malditos, do Orkut.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Como diminuir as filas nos caixas eletrônicos.
Os cartões magnéticos deveriam ser entregues somente a quem:
1. Sabe ler e escrever;
2. Saiba interpretar um texto;
3. Saiba usar um computador;
4. Tenha passado por psicoteste.




O Poetrando está atulaizado.




Nada de Anormal

Os mais simplistas podem dizer que são avisos do além, assim como os exotéricos e os bobinhos que acreditam em fadas, elfos e gnomos. Os mais céticos nem percebem a relação. Os descrentes afirmam que são apenas coincidências. Como, até hoje, não sei em que grupo me colocar, apenas acho interessante certas coisas co-relacionadas que nos acontecem de vez em quando.

Antes de vir para a Bahia eu morava em Belém. Entre os inúmeros amigos que deixei por lá havia o Paulo Rocha, Paulo Bico Doce, para os da turma. Esse apelido ele ganhou por ser o maior bicão que todos nós conhecíamos. Se ficava sabendo de uma festa, se auto-convidava; nas noitadas nunca tinha grana para dividir a despesa; cantava as namoradas nos amigos na maior cara de pau; aparecia na casa de qualquer um sempre na hora de alguma refeição; pedia para dormir em qualquer casa. Uma figuraça. Alguém o apelidou de Jibóia numa época em que estava cheio de pano-branco e, segundo dizem, não me comprometam, ele tinha "aquilo" do tamanho de uma serpente.

O sujeito era a cara do Dalto, lembra do Dalto? Mas esse apelido o enfurecia. Por uma questão de amizade preferimos não chamá-lo assim, a não ser quando queríamos vê-lo nervoso, o que é sempre divertido entre amigos de verdade.

O cara era tão bicão, mas tão bicão, que quando eu disse que estava vindo embora ele simplesmente se escalou, "vou com você", e veio! Agora, adivinhem quem bancou a vinda dele? Mesmo estando mais limpo que banheiro do Hilton, não consegui me livrar do cara. Eu tinha um convite de uma família amiga para me hospedar na casa dela até me arrumar. Um doce para quem adivinhar onde ele se hospedou. Ok, devo doces para todos. Apois num foi, gente? O Bico simplesmente arrumou um colchonete de um vizinho da tal família, vizinho esse que, logicamente ele não conhecia, e dividiu o quarto comigo.

Eu vim para trabalhar enquanto ele veio a passeio. Aliás, sempre deixou claro que veio ao mundo a passeio. Dois meses depois de se meter em mil confusões e se empapuçar de maconha com os amiguinhos que arrumou, bateu saudade dos urubus do Ver-O-Peso e voltou pra casa.

O pai dele, seu Rocha, era um outro tipo inesquecível. Um metro e oitenta, carequinha em cima e cabelos longos e lisos embaixo, era funcionário aposentado da FUNAI. Depois de tantos anos vivendo na floresta, não se habituava mais em viver dentro de casa, muito menos na cidade grande. Pegou suas economias e comprou uma casinha na praia do Outeiro. Guardando os resquícios da beleza que provavelmente tivera na juventude, passava os dias passeando pela praia só de short, com um rabinho de cavalo com os poucos cabelinhos que lhe sobraram. Sentava-se na barraca da Ana, pedia uma água de coco e gastava saliva xavecando o mulherio que aparecia. Dona Cléria nem tchun. Até se divertia com as tentativas de aventuras amorosas do marido.

Essa noite sonhei que estava num lugar misto do conjunto da Cohab onde a família Rocha morava quando a conheci e da praia onde a visitei pela última vez. Eu procurava a casa do Bico. De longe ouvi uma voz de tenor cantando alguma coisa e identifiquei a origem da música como uma casa de madeira trabalhada, uma miscelânea de pinturas e esculturas. Aquela aparência sui gêneris deixava claro que aquela era a casa do meu amigo. Ao bater à porta ele me recebia e a voz continuava em seus estertores tenores. Ao entrar eu identificava o Pavarotti como um sujeito cinquentão, mas forte, completamente careca, parrudo, branco como uma tapioca, com uma garrafa de cerveja na mão e alegre como uma pomba-gira.

Ele abraçava o Bico e dizia "está bem de pai novo, hein, meu filho?".

Peraí! Pai novo? Aquele cara era padrasto do Paulo Bico Doce? Por onde andaria seu Rocha?

Pelo ar de tristeza do meu amigo, deduzi que seu pai havia morrido.

Acordei com esse sonho na cabeça e fiquei com ele enquanto fazia a higiene pessoal.

Procurei uma agenda antiga onde anotara seu telefone e liguei. Eram sete horas. Do outro lado o Paulo atendeu, fez uma pequena festa quando soube que era eu, mas logo mostrou a voz triste ao dizer que estava chegando do velório do pai, que seria enterrado às dez.

Coincidência? Metafísica? Telepatia? Pouco importa. Fiquei triste por ele.

domingo, novembro 20, 2005

Tenho que lembrar de não esquecer... esquecer... Ih! Esqueci!




Coluna nova enviada para o site do Pedro.


O Poetrando está atualizado




Jurandir e o Raciocínio Lógico

Talvez não para ele, mas para os outro o Jurandir é um sujeito muito engraçado. Quando guri seus irmãos o chamavan de "o voador", conseqüência de sua facilidade em desligar-se do ambiente ao seu redor e entrar com força em seu próprio mundo.

Sem mais nem menos gesticulava enquanto balbuciava algo ininteligível para os demais. Voava mais fácil que albatroz.

Garoto amável, sempre disposto a ajudar alguém, assim manteve-se por toda a vida, uma daquelas almas que vão para o céu, caso exista céu.

Ajudava também a mãae nas atividades do lar sempre que solicitado, mas sempre havia um desastre à vista quando isso ocoria.

Certo dia a mãe pediu que ele retirasse a mesa do almoço, o que fez sem reclamar, na maior boa vontade. Aonde foram parar os pratos e talheres a mãe só descobriu quando ligou a máquina de lavar roupas.

Maiorzinho e independente, o próprio Jurandir preparava seu café da manhã antes de sair para a escola, só que, não raramente, fritava a casca e jogava o ovo no lixo, ou colocava o açúcar no coador e o póde café no fundo do bule.

Bom aluno, nunca repetiu de ano. Passou no primeiro vestibular que prestou. Na faculdade apaixounou-se por Eliane e foi correspondido, casaram-se, tiveram tr~es filhos lindos. O fato de ter ido para a solenidade de formatura com paletó, gravata e calça de pijama não causou estranheza nos colegas nem nos mestres, que tiveram quae explicar ao reitor que não havia nada de rebeldia naquele ato.

Certa manhã Eliane recebeu um telefonema do marido. Estava ele no banco para abrir uma caderneta de poupança para os filhos, mas tinha um probleminha: como era mesmo o nome das crianças? Perguntou isso à mulher, mesmo estando com as carteiras de identidade dos filhos no bolso.