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quinta-feira, dezembro 01, 2005

Milagre é o que não se consegue explicar



Senhoras e senhores, o mestre
O Pupilo e o Mestre

Depois de cinco aulas Odacílio, o mestre, deixava o pequeno Luzílio fazendo os exercícios sozinho na enorme sala do casarão e ia para o estúdio onde preparava seus arranjos, lia as novas do mundo dos recitais, escolhia o repertório de sua próxima apresentação, analisava as melhoras ou não da turma do conservatório.

O pupilo, já acostumado com os calos nas pontas dos dedos e a dormência provocada pela repetição infinita de cada posição, tomava mais e mais gosto pelo violão. Não reclamava, não choramingava como seria comum em garotos de doze anos como ele.

O pé direito muito alto, as paredes largas, o soalho de madeira corrida e o silêncio da rua ajudavam na acústica, fora isso havia a vantagem de, numa casa tão grande, não serem perturbados pelos barulhos da cozinha ou da máquina de costura de dona Eflúvia, mãe do Odalício.

Na penumbra do enorme quarto, transformado em sala de música, o menino Luzílio, absorto no instrumento, sentiu-se observado. Assustado olhou para a direita e viu um senhor todo de preto, numa camisa de malha com mangas compridas e gola alta. Com as mãos cruzadas sobre a coxa que estava sobre a outra nas pernas cruzadas, o homem de cabelos grisalhos nas têmporas, bigode também grisalho, tinha um leve sorriso, o que ajudou o garoto a se tranqüilizar.

- Não pára, Luzílio! Continua!

Odalício gritou do estúdio ao perceber a interrupção dos sons do violão. Com um gesto de mão e um acenar de cabeça o senhor grisalho sinalizou para que o aluno continuasse os exercícios.

Ao final da aula Luzílio procurou o simpático intruso, mas não o viu mais. Imaginou ser algum outro professor, amigo de Odalício, e não deu atenção ao fato.

Nos dias seguintes, porém, o homem de negro voltava a aparecer. Na mesma posição, com o mesmo sorriso, nos mesmos trajes, restringia-se à condição de observador.

Um dia foi dada a Luzílio uma lição bem mais difícil que unia velocidade nos toques e posições alternadas bastante complicadas. O garoto penava, suava, não estava dando conta da tarefa. Olhou para o lado e lá estava o misterioso visitante com uma craviola no colo. Luzílio parou o exercício e pôs-se a obervar o agora íntimo espectador. O senhor grisalho, com o indefectível sorriso, lentamente foi executando a tarefa dada ao aprendiz. Fez uma vez, olhou para Luzílio e fez sinal para que repetisse. Assim se alternaram. O homem fazia uma vez, o garoto outra, novamente o homem, de novo o garoto. Ao final da aula, Luzílio executou sozinho e com desenvoltura todo o movimento por três vezes seguidas, para o espanto do mestre Odalício.

Com o passar dos dias essa troca entre o garoto e o calado professor foi ficando mais contumaz. Odalício dava a missão e se retirava. Luzílio tentava algumas vezes e o senhor de negro o ensinava a maneira mais fácil e correta.

Assim se passaram seis anos, até o dia em que o jovem fez o concurso para o Conservatório, sendo aprovado. Odalício despediu-se do rapaz, satisfeito com o tanto que fizera para torná-lo um bom instrumentista. Sequer imaginava que o verdadeiro mestre jamais se apresentara.

No primeiro dia de aula, ansioso Luzílio chegou cedo à escola de música. Para aquietar a inquietação, saiu pelos corredores conhecendo o ambiente, também um casarão do final do século dezenove. Salas grandes, paredes altas e grossas, portas enormes e corredores de soalho absurdamente compridos.

Em um dos salões viu, distribuídas pelas paredes, dezenas de fotografias de grandes instrumentistas do passado. Sem pressa saiu olando uma por uma. Ao colocar-se em frente a uma delas sentiu um arrepio subindo-lhe pela coluna até eriçar os pelos da nuca.

A foto mostrava aquele senhor que o acompanhara e ensinara por seis anos na casa de Odalício. Os mesmos cabelos grisalhos, a mesma roupa negra, o mesmo sorriso suave, a mesma craviola. Uma plaqueta dourada o apresentava: "Paulinho Nogueira, 1929-1996".



Reescrevi esse texto três vezes, mas ainda não consegui deixá-lo como queria. Quem sabe um dia...

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