Quando guri, lá pelos sete, oito anos, minha mãe pedia que eu passasse a limpo suas receitas culinárias em um caderno e suas receitas de tricô, bordado e crochê em outro. Talvez fosse preguiça dela, talvez para me manter ocupado, endiabrado que eu era. Ela tinha, e ainda tem, uma letra linda como era comum terem as moçoilas normalistas. Para que minhas letras não destoassem muito da beleza dos traçados das dela, eu caprichava. Me lembro de ter passado tardes inteiras escrevendo naquele caderno pequeno, mas de muitas folhas e com espiral largo de metal e capa com quadrados vermelhos entrelaçados.
Meu pai costumava sentar-se na varanda após chegar do trabalho, numa cadeira de balanço de ferro e espaguetes verdes, e lia seus bolsilivros. Era dois, três por dia. Depois de lê-los, pedia para que eu fosse na casa de um dos muitos amigos trocar. Eu só andava descalço e nas ruas, corria. Achava tedioso caminhar. Colocava dez, doze livrinhos embaixo do braço e saía em disparada, entregava os livros para o destinatário, recebia outros tantos em troca e voltava correndo para entregá-los ao meu pai. Uma dessas trocas foi uma aventura. A ordem era ir até a cadeia e entregar três bang-bang para um preso. O soldado me levou até a cela, abriu a grade e eu, que assistia aos filmes de mocinho e bandido no Cine Melhém, me senti amedrontado ao entrar na cela dos três homens maus que conversavam estirados, de calção, em seus catres. Um deles fez sinal com a mão para que eu lhe entregasse os livros, passou a mão na minha cabeça, agradeceu e me entregou outros três. Nunca mais entrei numa cadeia, mas, pelo que vejo nos noticiários, imagino que elas não tenham mais aquele ar pacífico.
De tanto escrever para minha mãe e de tanto levar os livros do meu pai para cima e para baixo, fui tomando gosto pelas duas coisas. Quando não estava na escola ou estava fazendo arte, pregando peça nos meus irmãos, ou estava lendo um dos bolsilivros ou estava tentando escrever alguma coisa. Minha mãe dizia que aquela leitura não era para minha idade, mas eu continuava lendo e gostando.
Lá pela sétima série, já com outros livros além dos livrinhos do velho Chico, gibis aos montes, MAD e já me interessando no Pasquim, Veja e até a Visão, irmã direitista da Veja, em parceria com meu irmão criei um super herói. Eu escrevia as histórias e ele desenhava. Fazia as figuras a lápis num cadernão enorme, mais de 500 folhas, cinqüenta centímetros de comprimento por quarenta de largura. Era minha estréia na ficção.
Eu era um garoto tímido, retraído e de poucos amigos, romântico e sonhador. Conheci a poesia mais ou menos por esse tempo. Nos livros de literatura ou gramática que usava na escola, procurava as poesias e fui gostando. Drumond, Vinícius, Manuel Bandeira, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Schimidt, Cecília, Gil Vicente... Eram muitos, de todas as épocas, escolas, estilos e eu devorava a todos e achei que seria capaz de escrever poesias também. E escrevia aos borbotões. Foram centenas delas.
No primeiro ano científico conheci o teatro. Por oito anos fui dirigido por Cláudio Barradas, hoje pároco de Santa Isabel, interior do Pará. Um intelectual fantástico. Foi o homem que ensinou a ler, a separar o texto do pretexto e do subtexto. Foi o grande guru que tive e a quem devo muito. Me fez entender que teatro não era apenas representação, mas muita literatura, pintura, arquitetura, óptica, enfim, a arte completa que pode usar todas as outras e ainda assim ficar incompleta.
Cláudio me levou de volta ao mundo da prosa que eu havia abandonado com os bolsilivros. Esaú e Jacó, A Guerra do Fim do Mundo, Memórias de Um Sargento de Milícia, Ao Correr da Pena, Teatro Completo de Artur de Azevedo, Porque Não Se Matava,... Foram tantos os livros que ele me emprestava ou indicava... E me caíram nas mãos as crônicas de Oto Lara Resende, Rubem Braga, Drumond... E eu comecei a achar que poderia escrever prosas também, mas tinha medo. Ouvia os autores falarem que escrever é um sacrifício, que é doloroso, um castigo sem fim, e os melhores deles ainda falam hoje, como João Ubaldo, por exemplo. Preferia manter minha pena traçando versos tontos, sem qualquer brilho, mas sem riscos, afinal de contas, qualquer molequinho de quarta série primária escreve versos e só os verdadeiros intelectuais vêem a poesia como arte ou literatura e são poucos os verdadeiros intelectuais, pouquíssimos. Com versos eu conquistava as menininhas tolas e românticas como eu e causava inveja nos brutamontes acéfalos. Eu acreditava que “a pena vence a espada”. Melhor ficar acomodado com meus versinhos tortos do que correr riscos com a prosa perigosa.
Vinte e poucos anos, recém saído da escola, família morando em outro estado, solitário e sem um puto no bolso, saí à caça do pão. Porteiro de hotel, garçon, instalador de telefones, cantor e muita gandaia. Precisava tomar um rumo na vida ou morreria pobre e com cirrose.
Surgiu um concurso literário, vinte e dois temas, cada concorrente poderia inscrever trabalhos em cinco. Inscrevi meus cinco, ganhei dois e tive uma menção honrosa. Peguei a grana e vim embora para a Bahia onde havia convite e promessa de emprego.
A prosa continuava contida.
Chegou o dia em que ela se rebelou e resolveu me dar ordens, forçou seu nascimento e fui tomando gosto pela vida. Me fez rememorar um papo que tive com Inácio de Loyola Brandão. Depois de uma palestra na UFPA, durante um bate papo ele me confidenciou: “se você tem um final, você tem uma obra”. Me disse que era um segredo que havia aprendido com uma professorinha do primário e que havia praticado toda a vida, sua obra tem provado que a professora sabia das coisas. Segui o conselho da professora do Inácio. Se tenho um final, tenho um conto.
E comecei a “contear”. Mas guardava na gaveta que enchia, enchia... Não tinha coragem de mostrar às pessoas com medo da crítica ser arrasadora. Mas os contos começaram a arrebentar a gaveta querendo sair. Aos pouquinhos foram virando blog e os amigos foram sabendo de sua existência. E amigos são bons para duas coisas: ajudarem-nos e nos colocarem em confusão. Tanto insistiram, cobraram, animavam, massageavam meu ego, que resolvi publicar. Eis que nasceu De Depois de Já.
Ansiedade e insegurança antecedem o lançamento, que ocorrerá dia 14. Já está nos sites de notícias, em coluna social, entrevista marcada em rádio na segunda-feira, coquetel presenteado pelos amigos e a sensação esquisita de que não fui eu quem escreveu aquilo que leio agora em brochura. Vamos ver no que vai dar.
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Um comentário:
Marcos, como ando sem tempo para o twitter, fiquei sabendo do lançamento do livro agora pela Luma. Parabéns!! Farei um post especial sobre ele esta semama.
Abraço
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