Adalgiza Silveira Andrada Cavalcanti Bulhões não era uma mulher qualquer de Cabrobó, era a mais nobre, mais altiva e mais rica. Ainda pequenininha a mãe, dona Elânia, ensinou que não deveria se juntar com as meninas ordinárias – ordinárias não no sentido de sem qualidade ou que não tenham bom caráter, mas comuns, iguais a todos da própria laia, embora, no fundo, o significado fosse o mesmo para a rígida mãe -, sua filha não poderia ser comparada com aquelas garotas de joelhos encardidos e cabelos alisados à banha de porco, filhas de funcionários públicos subalternos e prestadores de serviços nas fazendas de seu pai ou vizinhança.
O sobrenome do pai não foi acrescentado ao da criança. Dona Elânia não permitiria que filha sua carregasse um Silva depois do importante Cavalcanti, herdado dos espanhóis que por ali passaram. Na verdade, dona Elânia só se casara com o apagado Gilsones por conta do único cartório da região que o rapaz herdara e dos muitos dinheiros que tinha a receber dos devedores do pai, agiota respeitado e violento, dono de três capangas com sangue nos olhos que não permitiam que as promissórias caducassem.
Elânia foi uma moça prendada, educada no Recife, tocava piano e fazia bordados com técnica turca, o que a tornava boa demais para os caipiras de Cabrobó. Batia o pé, queria casar-se, mas não com qualquer um, o que fez com que o Coronel Atenório perdesse os últimos fios de cabelos em busca do noivo ideal. Os pretendentes que não satisfaziam as exigências mínimas eram enxotados sob as ameaças do chicote e da garrucha.
Ao saber que o pai de Gilsones morrera e o rapaz chegara às pressas de Salvador, onde estudava Direito, Atenório viu nele as últimas esperanças. Bem apessoado, educado e com um negócio próprio, além das dívidas de agiotagem a receber, Gilsones tornou-se a fonte de inspiração para os muitos argumentos que o Coronel teve que inventar até, depois de muito suar, argumentar, espernear, convenceu Elânia a aceitá-lo como nubente. Para Gilsones seria um excelente negócio, não havia como recusar.
Dezoito meses depois do casamento, Elânia deu à luz Adagilza, para quem foram providenciadas damas-de-leite, babá da capital e professores particulares. Após a festa de três dias dos seus quinze anos, fora mandada para a Escola de Moças de Madame Donorá, no Recife. Seguia os passos da mãe.
Depois de formada e de volta à cidade, seguia também a sina de não conseguir um noivo com o cabedal de qualidades e riquezas digno de sua importância. A filha queria um noivo, mas rejeitava todos. Um não tinha traquejo no vestir, outro não sabia se portar numa mesa de três talheres e guardanapos de linho, outro tinha as pontas dos bigodes mal aparadas, outro não lustrava os sapatos, aquele não tinha onde cair vivo, esse não usava perfume francês, e os defeitos dos rapazes eram catados a pinça.
Quando instalou-se a indústria de álcool e Godinho Bulhões apareceu no cartório para registrar os papéis, Gilsones já o viu de casa no altar, braços dados com Adalgiza. Tanto fez, tanto gastou, tanto investiu e insistiu que terminou convencendo os jovens que foram feitos um para o outro. Para alívio geral, casaram-se. Mas não em qualquer dia. Casaram-se no Natal e a ceia das famílias mais abastadas, todas convidadas para as núpcias, só aconteceria no dia 26, o casório da neta do Coronel Atenório era mais importante que o nascimento de Cristo.
Os negócios de Godinho, porém, começaram a dar errado. As plantações de cana sofreram uma praga de besouros e brocas, a terra não mostrou-se tão boa para o plantio como mostravam os estudos anteriores, as estradas não davam segurança para o escoamento da produção que diminuía safra após safra. Por conta dos muitos acidentes com os caminhões, as seguradoras aumentavam o preço das apólices. Godinho ia ladeira abaixo.
Adalgiza, rainha desde criança, pouco ligava para a bancarrota do marido, algo mais grave a assustava. Havia chegado à cidade a família Correia Carrilho, gente rica de São Paulo que erguia hotéis a torto e a direito. Em cada cidade com mais de vinte mil habitantes da Zona da Mata, de Sergipe ao Rio Grande do Norte, abririam um hotel. Cabrobó fora escolhida como sede do império que se formava por ficar eqüidistante das extremidades da área a ser abraçada pela família.
Setembrino Correia Carilho comprava terras, contratava gente, erguia prédios, aparecia nos jornais, hospedava romeiros, vendedores, funcionários do governo, fugitivos... Não importava quem vinha ou quem ia, Setembrino abrigava, alimentava e ficava com seu dinheiro. A fortuna, que não era pouca, se multiplicava. Isso nada dizia a Adalgiza, pouco afeita a negócios, o que lhe tirava o sono e o sossego era Zaninha Correia Carrilho, mulher de Setembrino.
Zaninha trouxe para o sertão o conceito de grife; óculos de sol de marcas famosas que Adalgiza só conhecia das revistas, roupas coloridas e leves, que ajudavam a enfrentar o calor da região, tecidas na China, diziam as comadres. Pouco comprava em Cabrobó, mandava buscar em Recife, Salvador ou São Paulo, onde havia mais variação.
Simpática e boa de conversa, Zaninha conquistava a todos. As mulheres não evitavam a comparação entre as duas e Adalgiza sempre saía perdendo. A paulista era mais dada, a paulista elogiava as pessoas, a paulista cumprimentava até os feirantes e, pior, a paulista era mais elegante, a paulista era mais bonita.
A cidade crescendo, mais gente empregada, dinheiro circulando, as portas se abrindo para o progresso. Uma rede da capital instalou a primeira loja de departamentos. Na solenidade de inauguração o prefeito, o padre, o juiz, Gilsones e Elânia, Adalgiza e Godinho cabisbaixo, Zaninha esfuziante e Setembrino com um terno cortado sob medida em fazenda de risca de giz.
Abertas as portas e dada a largada para as compras, começou a disputa tácita entre as duas mulheres. Cada uma com seu carrinho, percorriam os corredores lado a lado. Se uma pegava um secador de cabelos, a outra pegava um secador e uma touca elétrica; uma escolhia um cobertor, outra um edredon, mesmo não fazendo frio em Cabrobó; Adalgiza comprou um salto alto italiano, Zaninha escolheu um scarpin francês; Zaninha comprou foie gras, Adalgiza, scargot. Olhavam-se, a princípio de soslaio, no calor da competição, com ódio.
Cavalheirescamente, Godinho e Setembrino, passeando na sessão de vinhos, conversavam. O hoteleiro com um sorriso tatuado na cara; o agiota com o cenho nervoso. Para Godinho, cada produto que a mulher colocava na cesta era como uma flechada no peito. A fúria de Adalgiza em comprar aumentava o pesadelo do marido ao pensar em como pagaria.
Mas a vida tem seu jeitinho de arrumar as coisas, embora de maneira dolorida, por vezes. Ao passarem pelos maridos com o terceiro carrinho abarrotado, as mulheres sorriam, uma feliz, a outra, desesperada. O coração de Godinho não agüentou, bateu em falso. Seu rosto empalideceu, as pernas bambearam, o peito ardia como se violentado por tição em brasa. Estatelou-se entre as gôndolas e as garrafas milionárias.
A loja inteira pára e corre em socorro ao conterrâneo ilustre. Muita gente, murmurinho, a sirene da ambulância e as compras das competidoras suspensas.
Ao acordar no hospital, ainda tenso, Godinho virou-se para a mulher, pronto para ter outro enfarte.
- Daginha, meu amor, como vamos pagar tudo aquilo?
- Terminei não comprando, marido. Deixei tudo nos carrinhos quando vim correndo te socorrer.
Aliviado, Godinho esboçou um sorriso e conseguiu dormir. Não imagina, o coitado, que a cabeça da esposa maquinava como e quando voltar à loja e comprar o dobro do que quase comprara. Quem aquela paulistinha de merda pensa que é?
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