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quarta-feira, novembro 30, 2005

Águas passadas não movem barquinhos.


A Felicidade Pode Esperar

Selvana sentou seus setenta e cinco anos de idade e cinqüenta de espera naquele banco de praça à sombra da mangueira. Ainda faltavam duas horas para a hora marcada do encontro, mas a ansiedade a impelira.

Não via Silas desde o dia em que ela recebera as rosas roubadas do jardim da igreja que Adamastor lhe oferecera. Seu Sidônio, o pai, alagoano plantador de fumo em Arapiraca, não admitia sua filha dar trela para o almofadinha da capital. Mesmo Selvana tendo já vinte e cinco anos e sendo a única da prole ainda solteira, a despeito de seus dons de dona de casa, sua beleza morena acima da média das moçoilas do lugar, os ciúmes do pai não permitiam que lhe fizessem a corte. Depois de ter expulsado dois pretendentes com uma peixeira em uma das mãos e o reino na outra, os rapazes evitavam olhar a prendada Selvana.

Irascível, seu Sidônio enviou a filha para a casa da madrinha em Cabrobó. Dona Eudócia, bem mais liberal, incentivava o embelezamento de Selvana com carmim e pó nas faces, vestidos mais curtos, dança na quermesse, quadrilha no arraial, onde ela conheceu Baltazas, com quem casou-se e viveu feliz por trinta e sete anos.

Do casamento nasceram Berenice, Brasilino e Bosco. Os filhos casaram-se, o marido faleceu e ela mudou-se para um sítio fora da cidade com as comodidades modernas, a companhia de dona Jucimara, empregada tão antiga que tornara-se irmã, e as visitas de Bosco, que lhe comprara um computador e lhe ensinara a comunicar-se com o mundo através da grande teia.

Se tornara uma velhinha moderna com MSN e Orkut, talvez a decana dos usuários. Nessas aventuras internéticas descobriu a comunidade da família Verçosa e nela o Silas Verçosa Neto, a quem adicionara como amigo e aos poucos foi-lhe conquistando a confiança e trocando confidências. Assim descobrira que o jovem era neto do Silas que esperava agora.

Trêmula de ansiedadae, não sentia o calor da tarde ensolarada, não ouvia os gritos dos vendedores ambulantes, apenas os olhos estavam vivos e ao ritmo do coração, procurando em cada canto ao seu redor um velhinho qualquer que ela sabia difícil de reconhecer. Sabia que ainda faltava muito tempo, aquelas duas horas eram mais demoradas que os últimos cinqüenta anos. Tinha medo de não conseguir esperar mais. O peito acelerado recebia doses extras de oxigênio quando inspirava fundo, na tentativa de acalmá-lo.

Um leve toque no ombro a trouxe para perto quando escarafunchava a distância com o olhar cansado.

- Selvana?

O velhinho de camisa de algodão branca impecável por dentro da calça de tergal cáqui, cinto marrom, elegantes óculos de aros grossos e lentes bifocais, sapatos lustrados e brilhosos, inspirava respeito e serenidade.

- Silas?, mal conseguiu balbuciar.

Levantando-se automaticamente abraçou o irmão que lhe restara, abraço demorado e carinhoso regado de lágrimas de quatro olhos. A sublimação do carinho.

Sem palavras, deram-se o braço e saíram caminhando na certeza de que aquele seria o Natal que todo aquele tempo não permitira acontecer.

terça-feira, novembro 29, 2005

Quem vive de memórias sofre duas vezes.


Passado É Coisa do Passado

- Amor, olha essa foto.
- Onde foi isso?
- Não lembra?
- Não.
- Amor! Foi naquela excursão à serra gaúcha!
- Ah!
- ...
- Quando foi isso?
- Não acredito! Tá tirando com a minha cara?
- Que isso meu bem? Eu não lembro, só isso.
- Nosso primeiro ano de casamento, Astrogildo. Como pode esquecer isso?
- Se estamos no sétimo, é lógico que tivemos o primeiro, mas também tivemos mais seis. E foram todos muito bons, não foram?
- Vai me dizer que não se lembra disso também...
- Ora, amor...
- Lembra onde comemoramos o segundo?
- Fortaleza?
- Fortaleza? Esse foi o quarto!
- Chapada Diamantina.
- Nunca fomos à Chapada Diamantina! Tá louco?
- Ih! Então, não lembro.
- Manaus, Astrogildo! Manaus!
- Ah!, foi...
- Vai dizer que não lembra...
- Lembro de um calor de sauna e muita água.
- E fomos com quem?
- Com o Clodoaldo?
- Clodoaldo? Que mané Clodoaldo?
- Ah!, é. Não te apresentei o Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Quem é Clodoaldo?
- Sei lá! Você que falou nesse tal Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Você tá bêbado, Astrogildo? Quem é Clodoaldo?
- Sabedeus. Não conheço nenhum Clodoaldo, Suméria.
- E como é que perguntou se fomos a Manaus com o Clodoaldo?
- Chutei, ué.
- Eu tô casasa há sete anos com um maluco e não sabia.
- Com quem fomos a Manaus em nosso terceiro aniversário?
- Segundo!
- Segundo? Quem é Segundo?
- Segundo aniversário, desgraçado!
- O que tem o segundo aniversário?
- Nós fomos a Manaus com o Cleócio e a Vilda em nosso segundo aniversário de casamento, seu beócio.
- Ah, foi!.
- "Ah, foi!, "ah, foi"... Você não lembra, confessa.
- Não lembro mesmo.
- Como é que você não lembra coisas tão importantes que nos aconteceram, seu maldito?
- Porque eu penso nos muitos anos que ainda vamos viver felizes. Porque vejo nosso amor em perspectiva, não em retrospectiva.

segunda-feira, novembro 28, 2005

O que difere uns de outros: Morrer é fácil, difícil é viver.



Cansaço

Na sala um sofá e uma poltrona de um mesmo conjunto, mas diferentes no uso. Enquanto o sofá aparentava nunca ter sido usado, a poltrona se mostrava gasta, o molde perfeito de um corpo em suas almofadas puídas. Na estante, de Joyce a Paulo Coelho, centenas de livros manipulados, tirinhas de papel, aos milhares, saiam de cada volume com pequenas anotações.

Os móveis antigos contavam a história de suas vidas, a do morador e a de seu pai, de quem os herdara. A segunda estante, a que ele chamava de estante de som, sustentava um antigo aparelho três em um do qual jamais se livraria. Nele eram ouvidos os muitos discos de vinil de Dolores Duran, Pixinguinha, Yes e Edu Lobo, entre os mais de quinhentos títulos. Aquele aparelho tocava as inúmeras fitas cassete de sua infância, as mesmas fitas que seu pai ouvira tantas vezes no Corcel 74.

No quarto se via a cama de solteiro com um velho colchão de molas e roupas de cama gastas, sempre desarrumadas. Sobre ela uma toalha de banho molhada. Uma estante de madeira de lei abrigava exemplares e exemplares de revistas velhas e uma tevê sintonizada num canal popular.

Ainda escorria a água do último banho pelas paredes, cortina e chão do banheiro de portas abertas que recendia o cheiro enjoativo do sabonete barato.

Sobre a mesa da cozinha uma folha de papel ofício com umas poucas palavras escritas em tinta de esferográfica: "Não há motivo, não há culpado, assim como nunca houve razão antes disso".

Nu, ajoelhado diante do forno onde enfiara sua cabeça depois de abrir o gás, dormia eternamente o corpo amarelado do dono de tudo aquilo.

domingo, novembro 27, 2005

Domingo no Parque

Na tarde preguiçosa e domingueira a menininha brinca, sozinha no balanço.

A cidade se espreguiça em volta da praça onde o pai, sozinho em um banco, lê seu jornal sem interesse. Ela, no carrossel, gira com seu vestido florido.

Até os alienígenas pardais se demoram a catar suas migalhas, enquanto a menina e seus cabelos negros em maria-chiquinha escorrega a bunda e cai de pé na areia pisada e repisada, antes branca, hoje marrom de uso.

Ao longe se ouve um samba. Algum botequim ainda vive na tarde morna em que a menininha tira as sandálias para sentir-se mais livre para escalar o brinquedo de canos. O pai, ausente, lê o caderno de esportes.

Sua mãe, em casa, prepara o suco e o bolo, vontades expressas da menininha para a merenda da tarde. A guria, sem coleguinhas, maquinava um jeito de divertir-se sozinha na gangorra.

Companhia ausente, o pai fazia caretas ao ler as novas da política e não via a menininha de maria-chiquinha, descalça, em seu vestido florido correr atrás da borboleta e não conseguir chegar ao outro lado da rua, impedida pelo carro cinza e veloz.

A menininha não viu a segunda-feira.

sexta-feira, novembro 25, 2005

"Nacionalidade" refere-se ao país em que se nasceu.
"Naturalidade" refere-se ao estado em que se nasceu.
Que substantivo refere-se à cidade em que se nasceu ou mora?




Tem texto meu no blog da Chris.


O texto abaixo participa do ponst comunitário proposto pela Micha.




Traição

A traição, hoje até estimulada por alguns meios, tabu há bem pouco tempo, punível com chicotadas ou apedrejamento em alguns lugares, já passou ou passa pela cabeça da grande maioria de cada um de nós.

Tive minha fase galinha que durou um ano e não me orgulho nada disso.

A vítima foi a Jandira. Não riam, o nome dela é esse mesmo. Uma pessoa maravilhosa, linda, sensível. Fazia economia e foi no campus que nos conhecemos. Ela com sua turma, eu com a minha (época desgraçada em que acreditamos que só somos alguém se tivermos uma turma) nos encontramos no forró que tinha no Vadião da universidade todas as sextas-feiras.

Rolou um clima. Praticamamente não dançamos. Foi aquele papo de horas em que um tenta impressionar o outro, ou seja, quando ambos estão afim, mas tão afim, que não quer que se resuma a uma noite.

A partir dali virou namoro e estava tudo muito bem. Mas havia a Cydia, outra pessoa fantástica. Nunca havia rolado nada entre nós, embora eu tentasse e tentasse. Mas o bicho mulher fêmea do sexo feminino tem uma coisa esquisita. Das duas uma: ou cultiva um espiríto de competição totalmente irracional entre outras da mesma espécie ou simplesmente não aceitam se verem preteridas. O fato é que nos cortam, dão as costas, esnobam quanto mais nos esforçamos para conquistá-las. No dia que desistimos, se ficarmos sozinhos, tudo bem, mas se aparecermos com outra, logo a que antes era objeto de nossas atenções e investidas se enciuma e começa a nos dar bola.

A Cydia não fugiu à regra. Dois anos de tentativas frustradas, mas bastou saber que eu estava namorando a Jandira, passou a me visitar em casa, chamar para sair, convidar para uma cervejinha num barzinho novo muito legal e por aí vai. Não resisti e caí matando. Não ia perder a oportunidade que procurara por tanto tempo, ainda mais assim, oferecida em papel de presente.

No dia seguinte a Jandira já sabia. Claro, tem sempre alguém pra vigiar a vida alheia, quase sempre aquele ou aquela frustrado(a) por não ter ninguém.

Eu gostava da Jandira, mas ela já estava apaixonada. Rompeu, xingou, me bateu. E os mesmos línguas de trapo faziam questão de vir contar como ela ficara mal. Não tentei a reconciliação, sabia que fizera uma merda muito grande. Troquei a economista pela bióloga e, pior, elas não se gostavam desde muito antes. O romance com a Cydia perdeu o gosto, amargou. Daí me joguei na esbórnia. Nada de namoro, nada de paixão. Cada noite ou dia uma e tava bom demais.

Não, não estava nada bom. Aquilo não era pra mim. Dei por acabada minha vida de galinha.

Tempos depois me apaixonei pela Ana Rita. Gatíssima cobiçada que me fez me sentir um Tom Cruise quando me escolheu naquela festa onde havia uma renca de marmanjos cercando-a.

Dois anos de namoro. Tudo muito bem, tudo muito bom, achava eu. Mas a vida é um bumerangue. Turistóloga, Ana Rita trabalhava num grande hotel em Porto Seguro, caiu nas graças de um colega e me traiu com ele. Recebi o bumerangue que atirara bem no meio da testa. Quem com chifre fere, corneado sairá ferido.

De volta às origens, cada vez mais me convenço que ninguém é obrigado a ficar com ninguém e se está, respeito é o mínimo que se deve dar e receber. A traição não é saída, muito pelo contrário, é a boca enorme de um fundo buraco.