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domingo, dezembro 26, 2010

Perspectiva

calendario2011

 

Quando criança e adolescente, ouvia muito falar em filosofia de vida, hoje essa expressão está meio fora de moda, talvez porque filosofia ou qualquer exercício intelectual esteja completamente démodé, tanto quanto a palavra démodé.

Pois bem, de tanto ouvir a dita expressão, ficava me perguntando qual seria minha filosofia de vida, quais seriam meus objetivos, quais os melhores caminhos a alcançá-los e tais que coisas. Deveras, esse negócio de filosofar é trabalhoso. E, em se tratando do próprio umbigo, não adianta ler Anaxágoras, São Tomás de Aquino, Aristóteles, Kant, Kierkegaard, Sartre, Pascal ou seja lá que nome dos mais altos panteões filosóficos, eles não conhecem seu umbigo. Ou melhor, meu umbigo.

Pensar é como aquela dorzinha muscular no dia seguinte a uma caminhada: dói, mas é gostoso. Eu buscava entender o que me movia, além de arroz, feijão e as ordens da mãe para ir à escola, estudar e lavar as próprias cuecas.

Um dia, após uma viagem de avião, comecei a entender como deveria viver e como eu já vivia e não sabia. Adotei para mim a filosofia do avião: “Senhores passageiros, em caso de descompressão da cabine, máscaras de oxigênio cairão do teto. Coloque a sua primeiro para depois tentar ajudar às pessoas ao seu redor”, diz aquela voz feminina robótica e fria como o ar das alturas.

Entendi que aquilo que eu achava egoísmo é autopreservação e solidariedade. Se você não estiver bem, como poderá ajudar aos outros? Se quem te cerca estiver mal, como você poderá ficar bem? Há um ciclo, uma simbiose entre mim e quem me cerca? Não sei se círculo ou simbiose, mas há uma interdependência. Se meu vizinho estiver empregado, alimentado e feliz, não pulará o muro para roubar minha casa; se eu estiver empregado, alimentado e abrigado, poderei começar a ajudar ao vozinho, ao vizinho do vizinho, ao quarteirão e pela cidade a fora.

Havia me presenteado com uma filosofia de vida. Ou melhor, aquela aeromoça havia me dado este presente.

Depois de muitas cabeçadas, muitas mudanças de rumo, de prumo e de objetivos, entendi que olhar para trás é perda de tempo, a não ser quando for para tirar alguma lição ou acalentar o coração com boa memória, mas por puro saudosismo, por autopiedade, autoflagelação ou qualquer outra forma de sofrer, é burrice. Presenteei-me com a segunda filosofia de vida: viver em perspectiva.

Antes disso eu lia e assistia a todas as retrospectivas dos anos que se acabavam, já não o faço mais. Numa olhadela rápida por cima dos ombros, agora que toquei no assunto, vejo um monte de perrengues, todos ultrapassados, alegrias indeléveis da memória e do coração; vejo os vizinhos no mesmo caminhos; alguns, graças a Deus, poucos cadáveres; muitos surgimentos, por parto ou pela proximidade da nova amizade. Há, no ano que se acaba, nada mais e nem menos que vida, pura e simples vida. E ela continua.

Nada de olhar para trás apenas pelo prazer da saudade, hora de apontar o nariz para a frente e caminhar sem medo, firme e honestamente, preparado para dores, amores, alegrias, dores de cabeça, fortuna ou dureza, pouco importa. Planejar nada tem a ver com adivinhar, predizer, sofrer por antecipação ou contar com o ovo no fiofó da galinha. Planejar para o sucesso, sabendo que troncos atravessados na estrada surgirão, mas sem temor. A cada passo uma alegria por ter conseguido dá-lo e já preparando para o próximo, em frente sempre.

Primeiro coloque sua máscara de oxigênio, depois de ter a respiração ordenada, ajudar à senhora da cadeira ao lado e pensar no pouso da aeronave, não na decolagem que já foi.

Sejamos muito felizes em 2011, sem pensar muitos em 2010.

©Marcos Pontes

10 comentários:

Adao Braga disse...

Eu aprendi isto na aula de teologia do antigo testamento.

- Amai ao próximo como a ti mesmo!

É parte da lei amar ao próximo, mas, também é da lei que a medida do amor a ele é do tanto que eu me amo... antes eu, depois ele, claro e evidente!

Bluesette disse...

Belo texto. Além de possuirmos a mesma filosofia do avião, tb não olho para trás e JAMAIS olho para além de 6 meses. E quando sou pega na surpresa absoluta, tb devo ao meu instinto de preservação o fato de ter chegado aqui inteira. Feliz Ano Novo pra vc e família, que nossa filosofia do avião nos poupe de grandes sustos. Bjs

Regina Brasilia disse...

Pensar não dói, digo sempre. Por vezes, apenas preocupa, demais...

Anônimo disse...

Execelente texto. Não sou bom para me expressar com as palavras infelizmente, mas acho que tenho a sensiibilidade para reconhecer um texto bom como o seu. Para mim o seu texto e um presente. Obrigado por compartilha ló com este simples leitor e admirador dos seus textos. Que 2011 seja um ano de muitas conquistas e realizações para você.
Grande abraço .

Mhhffddf disse...

Excelente Texto. Você com muita sensibilidade expressa o obvio com propriedade. Continue alimentando nossas almas. Obrigado!

Anônimo disse...

Prezado Amigo,
Cá estou novamente neste espaço, já fazia algum tempo.... mas a correria do dia-a-dia, acentuada no final de ano, não permitiu maior freqüência...

Diga-se, aliás, que a correria diária inibiu outras tantas coisas prazerosas e simples da vida. Mas somos assim, repetimos promessas nos finais de ano de algo que já tentamos fazer em anos anteriores, porém não fizemos. E a vida segue seu rumo.

A questão de olhar para si próprio é exercício árduo e, por vezes, o subterfúgio da fraternidade tão valorizada pelo código cristão é o ardil necessário para escapar ao autoconhecimento.

Sábia a postura de auto-preservação.

Sábios aqueles que buscam sua própria paz como forma verdadeira de auxílio ao próximo.

Sábios aqueles que exercitam a fé em todos os atos da vida.

Olhar em perspectiva, em síntese, é praticar a fé na sua plenitude acreditando em si próprio, no ser humano, na sociedade e na vida.

Feliz 2011!

Abs
@Decubito

Isnande Barros disse...

Legal a perspectiva.
Que se vá 2010.
Vejo e espero 2011.
Bom texto, bom presente.
Abraço.

Beatriz disse...

Sempre que você fala dessa sua visão de mundo lembro do artista e de que você é, também, um deles.
Oh che dolce cosa è questa prospettiva!, disse Paolo Uccello (1397-1475), pintor e muralista italiano cuja vida foi encantar com seus afrescos e estudos cuidadosos sobre a perspectiva.
Com muita "gioia" faço parte de sua perspectiva.

TonMoura disse...

Pois é. Calvino foi propositalmente mal interpretado pelos professores brasileiros, defensores do anti-religiosismo, quando disse que "é bom que o homem se esmere em ganhar mais dinheiro", porque eles propositalmente omitiram (e alguns ainda omitem) o final da frase "para, assim, poder ajudar mais pessoas."

Rita de Cássia disse...

Pra frente é que se anda. Feliz 2011!