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sábado, junho 24, 2006

Bolero

Bolero


As sextas-feiras, até as seis da tarde, eram cruéis, lentas para Divanilma, as horas não passavam. O expediente da enfermeira não acabava nas sextas-feiras. Quando, por fim, o relógio batia a hora da saída, era a primeira a bater o ponto e correr para o ponto em que a espera pelo ônibus era uma eternidade.

Descia a duas quadras de sua casa e percorria a distância sem sentir qualquer cansaço nas pernas que trabalharam de um lado para o outro nos corredores do hospital durante todo o dia. Ao abrir a porta, o casaco já estava na mão, os sapatos desafivelados eram jogados para qualquer lado, da bolsa só retirava a carteira que transferia para outra bolsa menor, de alça fina e longa. Despia-se apressada em direção ao banho. O melhor xampu, o sabonete especial que não usava para trabalhar, não ficava bem uma enfermeira recendindo a sândalo e amêndoas enquanto limpava urinóis e fazia curativos.

O perfume caro, metade do salário, a saia rodada e colorida com a blusa de seda vermelha passada de véspera e deixada sobre a cama antes de sair para o trabalho, a meia-calça sóbria e os sapatos de salto agulha que a deixavam mais alta, elegante e com leveza no andar, andar de gueixa, como ela gostava de dizer.

Um olhar demorado e analítico no grande espelho. Nada poderia estar errado, nem mesmo um fio da sobrancelha cuidadosamente escanhoada. Uma olhada no relógio de parede, havia tirado o de pulso que julgava deselegante para uma dama em tais circunstâncias, além de não querer dar bola para o tempo depois que saísse.

Andava pelas ruas de paralelepípedo, uma nova Divanilma, despertando olhares enquanto se dirigia para o Baile do Valdívio, onde dezenas de cavalheiros, já impacientes, a esperavam e dançavam com qualquer uma para que a espera fosse menos dolorosa. Cada um alimentava a esperança de que essa noite teria a sorte de ter seu convite para dançar aceito.

Para consolo dos rivais, nenhum conseguiria. Sabiam que Divanilma esperava o par perfeito, o homem com quem dançaria pelo resto da vida.

Sua mesa, à margem da pista de dança, estava pronta como sempre. Valdívio a recebia na porta. Consorte com sorte e vítima das invejas masculinas. A conduzia até a mesa, lhe puxava a cadeira e, célere, trazia sua cuba libre com mais cola e gelo que rum.

O passo seguinte era o cortejo dos dançarinos solicitando seu par, educadamente dispensados.

Naquela sexta-feira, porém, um novato no baile, desavisado da história de Divanilma, não temeu a dispensa já esperada pelos demais.

Paletó e calça brancos, camisa vermelha contrastando com a fina gravata azul, sapatos pretos, primorosamente lustrados, Ferizórdio, encnstado com os cotovelos no balcão, encantou-se com a morena desde que a viu entrar, braços dados com Valdívio. Observando suas ancas balouçantes e as batatas das pernas fortes e grossas equilibando-se graciosamente sobre os saltos finos, Ferizórdio percebeu o potencial do par perfeito para o bolero.

Com a ginga segura de quem sabe usar muito bem as pernas na pista, Ferizórdio aproximou-se de Divanilma. Com exceção do bolero, silêncio total, dezenas de olhos observando sua aproximação, inclusive os de Divanilma. Os homens torciam para ela livra-se do invasor ousado como se livrava deles; as mulheres, enciumadas, não queriam ver mais um homem fisgado pelo charme passivo de Divanilma.

- Bela senhorita, Firizórdio, seu criado. Muita satisfação.

Enquanto apresentava-se, tomava a mão da moça e beijava.

- Tão bela dama dar-me-ia a satisfação de acompanhar-me nessa dança?

Dançaram juntos até os primeiros brilhos do sol e há vinte anos continuam dançando todas as sextas-feiras no Baile do Valdívio.

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