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segunda-feira, janeiro 15, 2007

Madame Bel, Pablo Picasso


Dorinha, faz essa cara de pena, não. Não careço de pena. Vivi o que pude viver e não foi mais pior nem melhor do que a vida dos que vivem bem desde a nascença. Cada um tem sua cruz, amiga, ou muitas cruzes, e eu tive as minhas. A vida me escolheu, depois escolhi a vida.

Se a vida levou minha mãe quando nasci e meu pai pelas estradas antes d'eu nascer e, mesmo me deixando sozinha, sem leite e sem banho, ela não quis me levar, estava dizendo que, já que eu fiquei, vivesse tudo o que tinha que viver. E vivi, Dorinha.

Não levo nada e nem deixo qualquer coisa para ninguém, mal tive para mim, para meu sustento roto, como deixar algo para os outros? Bem que eu gostaria de ter uma casa, jóias caras, uma terrinha, um bangalô na praia... Nada disso para meu luxo, mas para poder deixar algo bom para você, amiga, que me deu comida, teto e carinho nesses últimos tempos, tempo mais ruim que todos os tempos ruins que já vivi. Deixar alguma coisa de boa para Philóphio, coitado do Philóphio, vinte anos de cadeia para me salvar do capiroto do Alesso. Se não fosse Philóphio chegar com a peixeira, Alesso tinha me matado, tudo por causa dos dez reais que ele não quis pagar pela trepada. Nunca mais fode ninguém! Mas fodeu com a vida do pobre Philóphio por vinte anos. Pobre Philóphio...

Queria deixar algo bom para Zineide também. A melhor amiga que eu poderia ter naqueles tempos. Não sei o que é ter mãe, mas ia saber o que é ser mãe, mesmo sem saber quem era o pai do meu filho que a morte não deixou nascer. Eu era bonita, Dorinha, os homens babavam para minhas coxas, para minha bunda, para meus peitos grandes e duros. Eu não podia perder aquela chance de ganhar dinheiro com a única coisa que tinha. Não fazia gosto ruim, foram muitos homens, de toda cor, cheiro, gosto. Se pagasse eu ia e fui muito. Ganhei uma fortuna naqueles tempos. Mas Deus não gosta de mim, Dorinha. Bem que ele poderia mer dizer por causa de que sempre me tratou como bastarda.

Justo quendo eu estava podendo cuidar de mim, dinheiro no banco, roupas novas e bonitas, casa para morar, de um ganhei um filho, de outro a doença. Daria tudo se morresse eu e ficasse meu filinho que nem nasceu. E a Zineide foi quem me deixou viva.

Eu tinha jurado para ela: Zineide, não quero mais ser rameira. Se Deus me curar e salvar meu filho, saio da vida, arrumo um emprego e vou viver para ele. Deus levou meu bebê e quem me sarou foram os remédios que a Zineide comprava com o dinheiro que ela tinha para comer, depois de eu ter gastado todo o meu com os médicos e laboratórios.

Agora vem essa outra sem cura e sem jeito. Para quê tanto remédio se não se pode matar a bicha? Vou tomar nenhum! Não vou dar mais dinheiro para médico, nem para farmacêutico, nem laboratório. Nem o meu, nem o seu! E não vou mais acordar de madrugada para entrar na fila sem fim da previdência. Se não há cura, para quê sacrifício?

Tenha dó não, Dorinha. Já sou uma velha nesses meus trinta e poucos anos. Não vê as rugas na cara? As da alma são mais e mais fundas. Eu morri em vida, amiga. Se há pecado, tenho crédito, muito crédito. Sofri mais do que pequei. Eu mereço o céu.

Mas não quero ir para cantar hosanas e passear de mãos dadas com os anjinhos- entre ele deve estar o meu que não nasceu-quero ir para encarar Deus nos olhos e exigir que me responda por que me odiou tanto.

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