Retrato de Despedida
A dor lhe deu uma infindável missão. Talvez não; talvez ele próprio tenha tomado emprestado da dor essa culpa. Acreditava que o amor era um só como acreditam os jovens que, quando abandonados, imaginam que o mundo tenha acabado junto e, por autopiedade, alimentam a perda até a própria dor exaurir-se, cansada do alimento excessivo. E a vida encarrega-se de apresentar outro e mais outro, tantos amores no decorrer do tempo.
A sua dor, porém, era insaciável e tão insegura quanto ele próprio. Recusava-se a abandoná-lo. Havia um comensalismo entre a dor e seu dono. E ele criou seu próprio poço das Denaides, não permitiria que aquele amor fosse substituído.
Com afinco e sem pressa, fabricou a moldura, comprou o pano, encerou, montou a tela. Pesquisou e criou as suas tintas e pincéis, os mais finos, com menos pêlos, que conseguia fazer.
Não precisava de rascunho. Fechava os olhos e nas pálpebras fixava a imagem daquela que amaria para sempre e com os pincéis fabricados com os próprios cabelos, pasou a pintá-la. Seria a pintura eterna.
Durante todo o dia diante do cavalete, mal conseguia pintar dois fios da cor e do formato dos cabelos que ela mostrara pela última vez.
Os dias passavam-se, as semanas passavam-se, os meses, os anos. Muito lentamente a pele branca e viçosa se mostrava, o nariz, os lábios finos num leve sorriso mostrando seu batom rosa de quase menina, o pescoço fino e longo, o colo... Anos, muitos anos. Não se formava a imagem de uma pintura, mas a mais fiel fotografia. Deixara por último as sobrancelhas, fininhas, delicadas.
Em suas têmporas os fios brancos abundavam enquanto os cabelos dela mantinham o imutável castanho. Fio a fio fez as linhas negras acima dos olhos.
Trinta e quatro anos depois do início, todos os retoques feitos e refeitos até a perfeição, o quadro pronto e terminado, ele o colocou sob o braço, iria entregar a ela como o último presente.
Atravessou a cidade a pé, abriu o enorme portão de ferro, ajoelhou-se diante da amada esquecida por tantos e eternizada por ele, depositou o quadro sobre a lápide negra em que se lia o nome dela corroído pelo tempo e deitou-se ao lado, pronto para encontrá-la na segunda parte da eternidade.
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