Histórias da Corte
Há dois anos saiu num jornal local daqui a notícia de uma garota que havia matado o irmão com uma facada. Como todo mundo, minha primeira reação foi de horror e de repulsa pela ação da garota. Hoje foi seu julgamento.
Daiane tinha 19 anos, um filho de um ano e três meses, e morava com a mãe, o padrasto e quatro irmãos, todos menores. Desses, o mais velho era o Henrique, com quinze anos.
No dia 24 de fevereiro de 2005 a mãe e o padrasto encontravam-se em outra cidade, respondendo a uma proposta de emprego. Daiane, também desempregada, ficara responsável pelos cuidados com os menores. Henrique trabalhava como flanelinha em frente a um supermercado, dois quarteirões distante.
No final da tarde, ao chegar em casa, Henrique encontrou os irmãos assistindo a um programa do SBT e Daiane na cozinha, limpando um pedaço de carne que seria preparado para o almoço do próximo dia. Henrique, o segundo mais velho, acostumado a mandar nos menores na ausência dos pais, mudou de canal, queria assistir à Malhação, da Globo. A molecadinha se rebelou, queria continuar assistindo aos seus desenhos. Começou a confusão.
No meio da gritaria, Daiane na defesa dos irmãos, discutia mais uma entre tantas as vezes que brigaram. Henrique arrancou com um puxão os fios da antena. Se ele não veria o que queria, ninguém veria nada. Daiane afastou o irmão e, com a faca com que tratava a carne, passou a desencapar as pontas dos fios arrebentados para religar a antena. Talvez com medo da faca, mas sem querer dar o braço a torcer, Henrique armou-se de um pedaço de pau e foi até o registro geral de energia, desligando-o. E a gritaria e ameaças continuavam.
Refeita a conexão da antena, os irmãos menores, de 14, 13 e 10 anos, alojados em frente à televisão, certos de que a irmã imporia sua autoridade e colocaria as coisas na ordem de antes, Daiane, saiu de casa para religar a energia. Ao virar-se de costas para Henrique recebeu uma paulada nas costas. Para defender-se, porém sem o intuito de ferir o irmão, apenas ameaçá-lo, prontamente a garota se virou. Nesse mesmo pedaço de tempo, Henrique se aproximava para desferir-lhe outro golpe, só que, ao dar um passo à frente, recebeu a lâmina no estômago. Um único golpe.
Ferido, o rapagote saiu correndo pela rua, mas caiu pouco mais de vinte metros à frente. A faca havia cortado a Aorta Torácica, levando-o a sangrar até a morte, pouco depois da chegada da ambulância, chamada por vizinhos assustados.
Durante o julgamento de hoje, no qual eu era um dos jurados, provou-se que Henrique era violento, já havia agredido a irmã outras vezes, numa delas deixando-lhe uma cicatriz profunda de mordida no braço esquerdo; já havia agredido a própria mãe, sendo necessária sua internação em hospital; era usuário de drogas.
Daiane, nesses dois anos, tentou levar a vida normalmente, estudando, arrumando empregos esporádicos. A família mudou-se.
Depois de seu discurso acusatório, o promotor pediu a absolvição, não diretamente, uma vez que seu ofício é acusar, mas deixando nas entrelinhas, baseando-se no Código Penal, que não recorreria de nossa decisão caso absolvêssemos a ré.
O advogado, o homem mais velho com quem já tive o prazer de conviver, o folcórico doutor Lopes, do alto de seus 95 anos, negrão com a cara de Pixinguinha, usou a Bíblia, católico fervoroso que é, para pedir a liberdade de sua cliente. Caim matou Abel, mas não foi condenado por Deus, que o marcou com uma cruz na testa e ordenou que ninguém o fizesse mal.
Falando assim, pode parecer que os discursos foram rápidos, mas advogados criminalistas, ao contrário dos trabalhistas que gostam de ir direto ao assunto, adoram o púlpito, a atenção e o rebuscamento da linguagem, mesmo que desconexa por vezes.
Na sala secreta, Daiane foi absolvida por sete votos a zero.
Dado o parecer pelo juiz, vi naquela garota magra, vestida com simplicidade, sua primeira manifestação de emoção. Os olhos deixaram escapar as lágrimas de alívio. Me doeu vê-la sozinha ali, nenhum parente ou amigo na platéia à sua espera. Sozinha no momento em que sua vida estava sendo decidida por sete estranhos. Não me contive. Fui até ela, apertei-lhe a mão, dei meus parabéns e recomendei que esquecesse o passado, levasse uma vida tranqüila, continuasse estudando para que seu futuro e de seu filho fossem mais felizes do que a vida fora até então. Aos prantos ela só conseguiu dizer "muito obrigado".
Fiquei feliz ao ver os demais jurados me seguirem, abraçarem-na. Vi que aquele apoio poderia ser um bom começo para seu futuro que desejo o melhor.
P.S.: Da última vez que narrei aqui um desses julgamentos, um leitor perguntou se eu não estava sendo anti-ético. Não, não sou anti-ético. O processo era público, qualquer pessoa presente poderia contá-lo, não necessariamente um jornalista. Não criei fatos, apenas narrei, resumidamente, é lógico, o que passamos naquela sala. Mesmo sobre o Henrique, que não foi um rapaz muito sociável, nem bom filho, nem bom irmão, pelos fatos narrados, foi por mim espinafrado. Não julgamos a ele, mas à Daine, que matou, sim, mas não é nenhuma criminosa. Aquela pobre moça não merecia passar dezenove anos na cadeia. Os anos que passou apanhando e mais esses dois que passou sofrendo enquanto corria o risco de perder a liberdade e açoitada pelas lembranças e pelo remorso, já lhe foram penas muito duras.
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