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sexta-feira, dezembro 14, 2007


The Tree of Life, Gustav Kimt

 

            Ninguém na praça àquela hora. De vez em quando o vigia noturno passava ali em sua ronda pelo quarteirão e não via qualquer coisa fora do normal. Não ver nada de anormal nas ruas de Capinzal é quase uma redundância. Naquela pequena cidade catarinense, o máximo que acontecia era uma discussão na feira por conta do preço do repolho. O chucrute estava ficando caro...

            Vigia noturno era apenas uma desculpa para se dar uma ocupação para seu Wilfredo, pai de três guris.

            Na noite fresca de março, seu Wilfredo passeava pelas ruas calçadas, radinho de pilha ao ouvido, apito no bolso e o despreocupado ar de quem sabia que não encontraria qualquer ladrão. O cacetete pendurado no cinto era apenas um cacoete da profissão.

            Em sua terceira passada pela praça, em posição diametralmente oposta à em que se encontrava, viu o doutor Asdrúbal sentado sob a luz do poste, vestindo um pijama de listras. Ficou curioso em saber o que levava o advogado a colocar-se ali às três da manhã, mas conteve-se. Primeiro, porque ele se negava a contribuir para seu salário, religiosamente pago em vaquinha por todos os demais moradores,  o que o isentava de vigiar a casa do rábula; segundo, porque o doutor Asdrúbal fora o advogado da última empresa em que Wilfredo trabalhara e o fizera perder uma boa grana na causa trabalhista que abrira contra os ex-empregadores. O advogado jamais fora perdoado pelo vigilante.

            Tentando ignorar  advogado, Wilfredo continuou em sua ronda.

            Mais uma volta no quarteirão, não pôde evitar uma olhadela em direção ao banco em que Asdrúbal se encontrava. Teve a impressão de que ele arfava, com a cabeça caída sobre o peito. Teria dormido? Estaria passando mal? Recostou-se em uma árvore e, por alguns minutos, não desprendeu os olhos do homem de pijama. Quando já se preparava para continuar sua caminhada viu Asdrúbal cair de lado abruptamente e, com as pernas na mesma posição, o tronco dilatar-se e comprimir-se com sofreguidão. O advogado tentava respirar e o ar lhe faltava.

            Wilfredo tirou o apito do bolso e o soprou a pulmão cheio enquanto corria em direção ao seu desafeto.

Aos poucos as janelas ao redor iluminavam-se, algumas abriam-se mostrando os moradores assustados atrás de suas caras de sono, moradores saíam para as varandas e calçadas. Todos viam Wilfredo socar o peito do advogado e soprar forte em sua boca na tentativa de dilatar-lhe os brônquios e refazer o coração retomar a pulsação.

Ainda sonolento, o médico, doutor Astrildo, logo percebeu o que acontecia. Entrou em casa rapidamente, recolheu sua maleta com os apetrechos médicos e, acelerado, foi ajudar o vigilante que já suava na tentativa de salvar a vida daquele que, por tantas vezes, desejara que morresse.

Os primeiros socorros ministrados por Wilfredo, aprendidos num curso obrigatório para os funcionários da transportadora em que trabalhara, ressuscitaram o homem que depusera contra ele.

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