Gosto de dizer que em minha casa nunca faltaram duas coisas: comida e livros.
Minha infância deu-se numa cidadezinha na fronteira com a Bolívia antes da chegada da televisão e onde a energia elétrica, vinda de um moto gerador, só era fornecida das quinze às vinte e uma horas. Em dias especiais, podia ir à meia noite.
O passa-tempo mais barato era, portanto, a leitura. E meu pai lia muito, e continuou lendo até seus últimos dias. Ele tinha uma rede de contatos com os quais trocava livros.
Depois de chegar do trabalho, ou nos fins de semana, era rotina dele pegar um livro ou vários bolsilivros, sentar na cadeira de balanço colocada na varanda e ler até cansar. Lia também jornais, quando esses apareciam na cidade e depois que foi fundado o primeiro local, A Pérola do Mamoré, além das revistas conseguidas sabe-se lá onde. Na cidade não havia livraria ou banca de revistas. Mas não faltava comida ou livros.
Minha admiração pelo velho era enorme desde a primeira infância e seu gosto pela leitura tornou-se exemplo a ser imitado. Havia, porém um pequeno detalhe: eu não sabia ler. Fica evidente, falando assim, que a atração pela leitura veio antes de conhecer as letras.
No ano da minha alfabetização, a madrinha de um dos irmãos, cozinheira boliviana que fazia uma salteña deliciosa, me presenteou com um livrinho de história, La Ratita Hermosa. Mal sabia eu ler em português e meu primeiro livro vem em castellano. Se eu já conhecesse Fellini, diria que era uma situação felliniana.
La Ratita Hermosa – que eu escarafunchava sílaba por sílaba até entender o que queria dizer aquela palavra estrangeira – e seu Chico com seus livros, revistas e bolsilivros foram meu Monteiro Lobato.
Na rede de leitores do meu pai estavam seu Luizão, o Astrogildo, o sargento Meireles, o cabo Agnaldo e alguns outros que se perderam nas nuvens da memória. Meu pai me chamava, me entregava dois, três livros e recomendava, “vai na casa do Luizão, entrega esses livros, pega os que ele vai mandar e diz muito obrigado”. Lá ia eu, de calção, sem camisa ou sandália, correndo pelas ruas de cascalho e piçarra. Cada dia a casa de um, muitos livros indo e vindo. Um dia veio a missão especial. Deveria eu ir à cadeia, que ficava na esquina do quarteirão seguinte ao nosso, procurar o Jair e entregar três bolsilivros. Já assistia às vesperais domingueiras do Cine Melhém, cadeia era, portanto, lugar de bandido, de gente perigosa, mas a emoção de conhecer a cadeia por dentro era de aventura homérica. Não sabia eu era que o tal Jair era prisioneiro e não guarda.
O carcereiro abriu a grade, me apontou quem era o Jair e eu, amedrontado tentando demonstrar segurança, no alto dos meus oito anos, entrei resoluto, entreguei a encomenda e voltei voando, levantando poeira vermelha, na carreira de volta para casa.
Aquele transporte diário de livros gerou a pergunta: por que as pessoas lêem tanto? Daí para pegar os livros e destrinchá-los, foi o caminho natural. Lógico que comecei pelos menores com capas mais coloridas, o autor, me lembro bem, Marcial Lafuente Stefania. Que, bem mais tarde, vim a saber que era apenas um dos muitos pseudônimos de escritor brasileiro recordista de livros publicados, segundo o Guiness Book. Bem pesquisei para saber mais sobre o escritor, mas, surpreendentemente, não encontrei nada on-line e a memória esconde alguns dos seus outros nomes falsos.
Meu gosto pela leitura deve-se, portanto ao meu pai, seu Chico, a La Ratita Hermosa e a Marcial Lafuente Stefania. Obrigado a eles por isso.
©Marcos Pontes
Minha infância deu-se numa cidadezinha na fronteira com a Bolívia antes da chegada da televisão e onde a energia elétrica, vinda de um moto gerador, só era fornecida das quinze às vinte e uma horas. Em dias especiais, podia ir à meia noite.
O passa-tempo mais barato era, portanto, a leitura. E meu pai lia muito, e continuou lendo até seus últimos dias. Ele tinha uma rede de contatos com os quais trocava livros.
Depois de chegar do trabalho, ou nos fins de semana, era rotina dele pegar um livro ou vários bolsilivros, sentar na cadeira de balanço colocada na varanda e ler até cansar. Lia também jornais, quando esses apareciam na cidade e depois que foi fundado o primeiro local, A Pérola do Mamoré, além das revistas conseguidas sabe-se lá onde. Na cidade não havia livraria ou banca de revistas. Mas não faltava comida ou livros.
Minha admiração pelo velho era enorme desde a primeira infância e seu gosto pela leitura tornou-se exemplo a ser imitado. Havia, porém um pequeno detalhe: eu não sabia ler. Fica evidente, falando assim, que a atração pela leitura veio antes de conhecer as letras.
No ano da minha alfabetização, a madrinha de um dos irmãos, cozinheira boliviana que fazia uma salteña deliciosa, me presenteou com um livrinho de história, La Ratita Hermosa. Mal sabia eu ler em português e meu primeiro livro vem em castellano. Se eu já conhecesse Fellini, diria que era uma situação felliniana.
La Ratita Hermosa – que eu escarafunchava sílaba por sílaba até entender o que queria dizer aquela palavra estrangeira – e seu Chico com seus livros, revistas e bolsilivros foram meu Monteiro Lobato.
Na rede de leitores do meu pai estavam seu Luizão, o Astrogildo, o sargento Meireles, o cabo Agnaldo e alguns outros que se perderam nas nuvens da memória. Meu pai me chamava, me entregava dois, três livros e recomendava, “vai na casa do Luizão, entrega esses livros, pega os que ele vai mandar e diz muito obrigado”. Lá ia eu, de calção, sem camisa ou sandália, correndo pelas ruas de cascalho e piçarra. Cada dia a casa de um, muitos livros indo e vindo. Um dia veio a missão especial. Deveria eu ir à cadeia, que ficava na esquina do quarteirão seguinte ao nosso, procurar o Jair e entregar três bolsilivros. Já assistia às vesperais domingueiras do Cine Melhém, cadeia era, portanto, lugar de bandido, de gente perigosa, mas a emoção de conhecer a cadeia por dentro era de aventura homérica. Não sabia eu era que o tal Jair era prisioneiro e não guarda.
O carcereiro abriu a grade, me apontou quem era o Jair e eu, amedrontado tentando demonstrar segurança, no alto dos meus oito anos, entrei resoluto, entreguei a encomenda e voltei voando, levantando poeira vermelha, na carreira de volta para casa.
Aquele transporte diário de livros gerou a pergunta: por que as pessoas lêem tanto? Daí para pegar os livros e destrinchá-los, foi o caminho natural. Lógico que comecei pelos menores com capas mais coloridas, o autor, me lembro bem, Marcial Lafuente Stefania. Que, bem mais tarde, vim a saber que era apenas um dos muitos pseudônimos de escritor brasileiro recordista de livros publicados, segundo o Guiness Book. Bem pesquisei para saber mais sobre o escritor, mas, surpreendentemente, não encontrei nada on-line e a memória esconde alguns dos seus outros nomes falsos.
Meu gosto pela leitura deve-se, portanto ao meu pai, seu Chico, a La Ratita Hermosa e a Marcial Lafuente Stefania. Obrigado a eles por isso.
©Marcos Pontes
3 comentários:
Olá Marcos,
parabéns pela escolha de seu post, é um excelente relato, cheio de aventuras e emoção. Agora é escolher o preferido.
Abraços.
Sensacional o seu conto.
Amei.
Abracos
thank you for the post High Speed Satellite Internet Service Providers
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