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quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Leiam a fábula


Carga Perdida


Na Curva do Bode, no alto da serra, início da descida, tombou o caminhão carregado de galinhas. Os poucos moradores do lugar rapidamente se juntaram, atraídos pelo barulho. Deram socorro ao motorista acenando para os poucos carros que passavam pela estrada de terra.

Gente simples, trabalhadora do campo, acostumada a plantar e a criar, levar seus produtos para a feira do povoado nos sábados pela manhã, levado o motorista, passaram a especular sobre o que fazer com as aves sobreviventes. Seu Onodério, o mais respeitado morador local, o mais idoso e mais antigo também, propôs que se juntassem as gaiolas sob uma árore e que alguém ficasse vigiando até que os donos viessem buscar a carga.

Sindrônio, rapagote de dezoito anos, inquieto e desejoso de aventura, como todos nessa faixa etária, ficou encarregado da missão de vigilância. Alguém trouxe água numa bacia que foi dividida em cuias pelas gaiolas e uma botija ficou para saciar a eventual sede de Sindrônio. O sol quente de março teria que ser refrescado com uns goles de vez em quando.

Mesmo contra seus instintos de inquietação, Sindrônio colocou-se calmamente escorado no tronco da sapucaieira, pastorando as galinhas. O tempo passava lerdo, mais lerdo que a lerdeza típica daquelas roças. O rapaz tomava um gole de água, mastigava o talinho doce de um capim, sonhava acordado com a festa da padroeira, fazia declarações de amor em voz baixinha para Valdicélia, imaginava garrotes e marrecos nas nuvens, seguia com a vista o colorido de um carro ou outro até que ele sumisse na lonjura no meio da poeira que levantava, e o tempo engatinhava. As penas esbranquiçavam o pasto assanhadas pela aragem.

A barriga começava a protestar, queria comida. A agonia do ócio tomava corpo e o corpo. O tempo esquentava com o sol a pino, mesmo sob a sombra da sapucaieira. O dono não aparecia para buscar os animais. E a fome apertava, a água diminuía na botija de barro, as nuvens sumiam por trás da serra, o tempo não andava...

Aquelas galinhas brancas, assim como o povo da cidade, não agüentavam aquele calor, a falta de conforto; aos poucos foram minguando, deitavam-se no apertado da cela. Não demorou, começaram a morrer. A princípio devagarzinho, uma de vez em quando, depois, três de vez.

Sindrôno tirou o canivete do bolso, retirou uma galinha da gaiola, sangrou o bicho, afastou-se um pouco para evitar as varejeiras e, sobre uma pedra, sem água quente para ajudar a depenar, retirou o couro inteiro, abriu a barriga, limpou por dentro. De volta à sombra da árvore, armou uma fogueira com os paus que encontrou no derredor, atravessou um na galinha tratada e pôs-se a preparar um churrasco. O que seria uma ave pela paga para quem tomava conta das demais, umas cem, que ainda viviam? O dono não haveria de se zangar.

Galinha demora a assar, dava tempo de ir até o cocho do outro lado da cerca e trazer um pouco de sal do gado. Quando voltou, encontrou Astrogildo e Denemário virando o assado no espeto. Dividiram a refeição.

De barriga cheia, os três deitaram-se na relva e passaram a discutir sobre o destino dos bichos, o sol já a caminho da descida.

- O homem num vem, não, Sindrônio.
- É, vem não.
- E os bicho?
- Vamo levar?
- Pra donde?
- Nós divide, o mesmo tanto pra cada um. Nós cria no terreiro.
- E se o homem vier?
- Nós adevorve.
- Tu concorda, Gildo?
- Concordo.
- E tu, Denemário?
- E num havéra de concordar? Eu que dei a idéia.
- Entonce vamo.

Levaram as vivas; já de noitinha voltaram para enterrar as mortas.

O dono nunca veio, só veio o guincho buscar a sucata do caminhão.

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