Aprendi, há relativamente pouco tempo, que me disfarço sob uma carapaça dura e antipática por auto-preservação. Se descobrirem que sou um sentimentalóide exarcebado não conseguirei mais dizer "não", vou me deixar explorar até a última hemácia. Não são raros os momentos em que me esqueço de mim, por mais egoísta que eu seja - e sou muito - para ajudar outrem. Normalmente me arrependo quando não recebo um "muito obrigado", a maior recompensa para quem ajuda.
São muitas as coisas que me forçam a conter uma lágrima, normalmente coisas bobas - para mim não o são, me tocam fundo. Não são raros os momentos em que me vejo diante de uma reportagem vertendo lágrimas que escondo até de mim mesmo, ou incontido diante de alguém que teve uma grande perda, mesmo que não conheça a pessoa ou seu objeto perdido. Assisto, por exemplo, ao Extreme Makeover só para me emocionar com a alegria daqueles que recebem uma casa em troca de uma tapera carcomida, mesmo sabendo que é um programa caça-níqueis, mas não deixa de ser tocante.
Por outro lado, não me emociona uma criança me pedir esmola. Me dá um misto de raiva dos pais, do estado, da assistência social oficial. Posso até pagar um lanche ou me deslocar até o supermercado mais próximo para dar uma lata de graxa, mas esmola, nunca.
Mas uma das coisas que mais me espeta o peito é ver um homem de meia idade ou mais desolado num canto sem ter como manter a família, fazendo qualquer servicinho em troca de uns trocados que viram farinha ou jabá, o máximo que pode.
Várias vezes andei por interiores pobres como o sertão nordestino ou o Vale do Jequitinhonha e observo mais os homens maduros que as meninas bonitas. Aquele que leva em sua bicicleta surrada um saco de estopa com alguma coisa que pode ser para ele comer ou apenas fazendo um carreto; aquele outro que se abriga sob uma marquise, olhar de rasgar a alma, sol de derreter cabelos, procurando ofício, mesmo que passageiro; um outro que anda, sandálias gastas que só protege a palma do pé, o calcanhar já se arrasta na terra, enxada nas costas e um chapéu de muito tempo, camisa com rasgos; aqueles muitos que se amontoam nas praças oferecendo-se para qualquer ajuda por poucas moedas... Esses homens me machucam.
Chegando do trabalho, me debruço na janela, cigarro aceso, para observar a chuva que começa a cair. Minhas janelas estão sempre abertas no conforto do segundo andar. Do outro lado da rua, à esqueda a marquise da clínica, à direita uma árvore frondosa. Sob a marquise um rapaz, trinta e poucos anos, forte, relativamente bem vestido, encosta a bicicleta esperando os pingos cessarem. Sob a árvore, quase ao mesmo tempo, um senhor, seus cinqüenta e poucos, também encosta sua bicicleta esperando estiar. O rapaz usa uma camisa de uma empresa; o senhor veste uma camisa de algodão já quase transparente de tantas lavagens. O rapaz cruza os braços, resignado, esperaria; o senhor não tira as mãos do guidão, olha para o céu com os olhos vividos, uma expressão que vi em tantos olhos, me lembram os olhos do meu pai.
O rapaz tem preso por elástico na garupa uma pasta preta; o senhor tem na garupa, amarrado com cordão, um saco que não me deixa ver o que tem dentro.
Por entre a fumaça do cigarro olho um e outro. Ao fundo ouço Nilson Chaves cantando Tamba Tajá. Comparo aqueles dois homens. Num eu vejo uma vida pela frente, cheia de oportunidades, alegria, a pelada domingueira com os amigos, a cervejinha gelada, a morena em beijos quentes, outras morenas nas aventuras. No outro vejo pouco disso no passado, um bate-papo com os dele, talvez uma cachacinha amiga, a velhinha em casa, varrendo, passando, cozinhando, educando as crianças. Talvez fazendo isso na casa de outros enquanto seus filhos cresceram sozinhos. Não vejo mais ambição naqueles olhos estóicos de resignação e tempo. Num vejo a vida que vem, no outro a vida que foi.
Esqueço o moço, só o velho tem minha atenção agora e por ele, sua vida, que espero seja gostosa contudo, me arranca lágrimas. Não de dó, mas de respeito, carinho e uma trocida profunda de que seja feliz. Ele jamais saberá disso, mas eu sei, basta. Aquele olhar bonito e sereno não me sai da cabeça, está tatuado em minha retina.
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