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segunda-feira, março 24, 2008

Manutenção

ac-eletricidade 

De manhã, no início do expediente, eu passo na sala de expedição e pego minhas as ordens de serviço. Fora as manutenções já previstas, sempre havia uma ou outra ocorrência que furava a fila. Depois de privatizada, a companhia dispensou mais da metade dos técnicos, o que fez diminuir o número de equipes e nós tínhamos que fazer de tudo, da manutenção preventiva às chamadas de emergência e em diversos bairros, não ficávamos mais restritos a uma determinada zona da cidade.

Os novatos pegavam o mais pesado ou aqueles servicinhos chatos, como tirar gato de cima de postes ou atender ao chamado da velhinha que reclamava da escuridão, quando o problema era apenas o disjuntor desligado por algum moleque que passara pela rua.

Naquele dia encontrei três notas. Uma era ali perto, coisinha boba. Algum cidadão alegara que os fios do poste estavam soltando fagulhas. Um pequeno curto circuito que eu resolveria em cinco minutos. O segundo referia-se a um poste que se inclinara com a chuvarada de ontem à noite. Falei com o chefe para que ele mandasse na frente uma equipe de escavação, assim, quando eu chegasse lá, o novo poste já estaria plantado e aí era só transferir os cabos. Não fazia sentido eu ir na frente e ficar parado esperando os caras cavarem o buraco, colocarem o poste novo para, só então, começar a trabalhar. O terceiro vinha do centro da cidade. Um transformador havia explodido. Trabalho pesado, mas sem grandes complicações. O guincho já estava lá. Começaria por aí.

Chamei o Guedo, meu parceiro, pegamos a viatura e fomos pra lá.

Colocamos a escada, o Guedo subiria para fazer a desconexão dos cabos enquanto eu checava a fiação para ver se não estava trançada, se não havia algum fio rompido.

O Guedo desconectou tudo, amarrou o transformador defeituoso no guincho, desparafusou as cintas e deu a ordem para abaixar. O dia estava quente, mas a sombra dos edifícios davam uma amenizada.

Retirado o trafo, Guedo desceu e eu subi. Sempre fazíamos assim, um fazia a primeira parte do trabalho e o outro terminava. Tirávamos no par ou ímpar quem faria o quê. Cinto de segurança preso ao poste, as ferramentas necessárias presas no cinto de utilidades, dei a ordem para levantarem o equipamento novo. Tudo correndo na boa, dentro do gabarito.

Passei a cinta, fixei os parafusos, desamarrei o trafo e dei sinal para descerem o guincho. Tudo certinho como deveria ser. Agora era a parte burocrática: conectar os cabos de alta e os fios de distribuição. Trabalhinho cacete.

Puxando um fio daqui, outro dali, dei de olhos na janela aberta do primeiro andar, logo ali em frente. Sentada com as pernas cruzadas, cabelos pretos impecavelmente presos num rabo de cavalo, provavelmente esperando energia para poder trabalhar, ela olhava eu trabalhar. Por dois ou três segundos fiquei parado olhando aqueles olhos pretos, hipnotizado, só voltei a mim quando Guedo assoviou lá de baixo.

- Bora, caboco! Tomou choque? Anda com isso que ainda tem dois serviços pra fazer!

Despertado pelo companheiro, percebi o quanto deveria estar com cara de bobo, paradão, olhando para ela. Não era pra menos, beleza assim não se vê todos os dias.

Ela parecia se divertir com meu embaraço e me sorriu. Meio sem jeito, sorri de volta, sorriso de meia boca, quase um pedido de desculpas.

Um olho no alicate, outro nela. Um olho na chave de fenda, outro nela. Uma das mãos segurando o cabo e a outra querendo tocar nela. Diminuí o ritmo, não tinha mais nenhuma pressa de acabar aquele trabalho. Lá em baixo meu povo se impacientava.

- Borá, Tarê! Acaba logo com isso!

Dei por encerrado, peguei o rádio e autorizei a central a religar a corrente. Normalmente fazia isso do solo, uma maneira de evitar um acidente, caso algum erro tivesse sido cometido por mim, mas hoje o faria lá de cima. Ficaria mais um tempinho olhando aqueles olhos pretos que me sorriam.

- Pronto, moça, pode ligar o computador. Tenha um bom dia.

- Muito obrigada. Bom dia.

Que voz!

Tomei o cuidado de deixar a ponta de um fio meio solta para que provocasse novo curto circuito e eu pudesse voltar no dia seguinte.

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