Sou Sete
Naquela segunda-feira, mais por obrigação do que por vontade, acordei sem qualquer disposição. Rolei na cama de frente para o lado mais escuro do quarto ainda penumbroso. Instituí a preguiça. Nada de trabalho, de obrigações e me mantive ali, sob as cobertas, olhos teimosos em manterem-se fechados,sem me importar com a manhã que os meteorologistas haviam prometido ensolarada. De manhãzinha é sempre fresco.
Me mantive assim, esquecendo o mundo, até que a bexiga não suportou mais a tortura da continência forçada. Um pé de cada vez, horas para o segundo juntar-se ao primeiro, um depois do outro, arrastando-se pela casa me levaram ao banheiro, mais pelo hábito que pela visão. A falsa masculinidade pulsando sob impulso da urina represada, nada de hormônios, mas a sensação boa da ereção leva a pensamentos para alguns pecaminosos, para outros, como eu, que não crêem em pecados, um desejo que não veio no sonho, mas na lembrança da esposa deliciosa do vizinho. Sujeito feliz.
A mão esquerda me apoia na parede, enquanto a direita dirige o jato para a água do fundo do vaso que não vejo, adivinho. Meus olhos assistem ao filme exibido nas pálpebras cerradas. Ela em seu requebro sob a malha indo para a academia exercitar os glúteos redondos; ela na piscina pegando cor sob minha vigilância por detrás da cortina; ela se abaixando para pegar algo dentro do carro e eu observando o vale entre os seios... Invento a luxúria e a cobiça. Invejo aquele a quem cumprimento hipocritamente com acenos, abraços e apertos de mão, sem o mínimo remorso de invejar sua vida, sua casa, seu carro do ano, suas férias em Fernando de Noronha, sua mulher cheirosa, inteligente, sorridente e deliciosa.
Satisfeito com o pouco que me dou, vou ao banho e enquanto esfrego displicentemente as orelhas ou limpo meus sucos restantes do falso prazer, sinto a fome de uma noite de jejum e uma manhã já avançada, quase meio-dia. Jogo-me numa roupa qualquer e me esforço para sair de casa, menos mal comer na rua do que preparar minha própria refeição.
Caminho procurando a sombra das marquises e árvores, devagar como se fosse um domingo de férias. A fome bem maior no desejo de comer do que na exigência do estômago reduz meu percurso original. Não vou me permitir andar mais duas quadras até o restaurante baratinho. Com o parco salário nos bolsos, hoje posso me permitir comer num lugar melhor. Ao mais caro, ao mais variado no cardápio, junto com os ricos do lugar.
À porta os mendigos, maltrapilhos, mais pobres e miseráveis que eu. Esticam o braço pedindo um trocado, com olhos lânguidos e famintos desejam a comida dos comensais abastados. Que se danem! Que resolvam seus problemas! Eu cuido dos meus e não lhes devo nada. A velha senhora, pernas cheias de feridas e varizes dilatadas, ousa me dizer que minha soberba me esperará no dia do juízo ao ver negado seu pedido de uns trocados. O meu é meu, que ela se dane antes com suas pragas lançadas.
Empanturro-me! Três saladas, filé à parmeggiana, lombo de porco com tutu e couve à mineira, suco de laranja, uma cerveja, água mineral com gás, da importada, por favor. Pudim de leite, mas a torta de limão me chama, depois um pedaço de bolo. Se não almoçar amanhã ou nunca mais, a refeição de hoje terá valido uma vida.
Vejo os garçons me olharem com olhos incrédulos e desdenho de seu espanto. Sei que gostariam de poder fazer o que faço agora. Eu posso! Tenho dinheiro para isso, eles não precisam saber que é meu único e pouco. Tentam se vingar adicionando um percentual na conta, já suficientemente grande, à guiza de gorjeta. Que se queixem para o patrão, não tenho nenhuma obrigação de lhes presentear com esse extra. Nada de gorjetas! Não é avareza, apenas defendo o que é meu.
E me orgulho disso!
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