Apolinário Neto era o que o avô Apolinário chamava de um pândego. Aliás, isso herdara do velho, junto com o nome.
O avô se divertia contando as peças que aprontara quando rapagote, entre elas, a preferida do neto, estava a entrada em um baile de debutantes montado em pêlo num pangaré fedorento. Logo depois fora expulso, é verdade, mas no dia seguinte se comentava mais de sua presepada do que do vestido francês da filha do prefeito.
O pequeno Apolinário ia encontrar-se com os amigos vestindo um velho pijama de listras brancas e azuis desbotadas, aposentado por seu pais, um robe de chambre e pantufas rosas, peludinhas e com duas orelhinhas de coelho.
Filho de família rica, ganhara uma picape no último Natal. Nas noites de verão era normal vê-lo chegar à praça em seu carro, a carroceria forrada com uma lona azul, cheia de água e fazer dela uma piscina. Os trajes combinavam: um maiô do tipo usado pelos banhistas do final do século dezenove: pernas até os joelhos, sem mangas e listrado de preto e branco.
Sua saída às ruas era diversão garantida para a pequena Conceição do Mato Dentro.
Rapaz de muito boa índole, mas sem juízo, diziam os professores. Um pecador inofensivo, dizia o pároco. Um desmiolado, afirmava o pai. Um amor de menino, derretia-se a mãe. Um pândego, afirmava o avô entre gargalhadas.
Naquele mês de maio, a família estava recebendo a visita de parentes que mudaram-se para o estrangeiro. Lá fora não fizeram fortuna, mas conseguiram uma condição confortável e alguma poupança. Programavam uma viagem a Guarapari, sentir o gostinho do mar brasileiro, distante há mais de dez anos. Convite feito e aceito por Apolinário Neto. Para mineiro, ver o mar é acontecimento, não ficaria de fora.
Ônibus alugado para levar toda a família, hotel reservado e lá se iam, farnel pronto, malas arrumadas. Apolinário levava sob o banco um pacote misterioso. Ao ser perguntado do que se tratava, apenas respondia “Berenice” e mais detalhes não dava. Que era “alguma” todos já sabiam, só não desconfiavam qual.
Viajaram por toda a madrugada, depois do converseiro, Guilvan, pai do nosso doidivanas, mandou que todos dormissem. De manhã, quando chegassem, deixariam os trens no hotel e iriam direto para a Praia do Morro, sem perda de tempo.
Assim foi feito. A mineirada toda paramentada para pegar sol, em seus maiôs démodé, desceu do ônibus correndo, areia para todos os lados, o mergulho tímido, um gole de água para comprovar que continuava salgada... Tia Véstia, sempre zelosa, de olho em tudo e todos, sentiu a falta de Apolinário:
- Cadê o Netinho? Cadê o Netinho?
- Deve estar dormindo no ônibus, respondeu alguém.
Preocupada como as tias velhas, Tia Véstia já se dirigia para o ônibus quando a porta se abre e sai Apolinário com o velho maiô listrado e de braços dados com uma boneca inflável inflada, presente que se dera na última viagem a Belo Horizonte.
Todos parados, boquiabertos, olhando o desfile altivo do moleque rumo à água, como um cavalheiro orgulhoso por sua dama impecável. A estupefação durou apenas alguns segundos. Logo estavam a gargalhar, menos Guilvan, envergonhado mais uma vez pelas tiradas do filho.
Não adiantou apelar, ameaçar, resmungar. Apolinário não abriu mão da companhia impávida de Berenice. Restaurante, hotel, lanchonete, passeio pelo calçadão, onde fossem, lá estava o inusitado casal.
Na manhã seguinte iriam passear de barco, escuna alugada pela família. “Menos mal”, pensou Guilvan, “pelo menos só nós vamos ter que encarar essa vergonha”.
O dia amanhecera nublado a água mais fria do que normalmente é em Guarapari. Ninguém arriscaria um mergulho.
Anejo e Jamira enjoando, Tia Celsa colocando os bofes pra fora, Gambira e Cenésia namorandinho abraçados na proa, Tio Clério distribuindo o lanche... E Apolinário sentado na popa, braços dados com Berenice, apreciando a vista.
Na altura de Areia Preta, o alarme: o barco estava fazendo água. A calafetação antiga se desfizera e o madeirame cedera. O porão estava alagado, as máquinas pararam. O comandante tentando colocar ordem e evitar o pânico. Coletes para todos, mulheres e crianças primeiro! A maré estava baixa e o calado é pequeno, não haveria grandes riscos, sem falar que todos estavam acostumados a nadar na Cachoeira, lá em Conceição do Mato Dentro, o problema era a temperatura da água naquele meio de outono.
O barco afundava rápido, a família toda abraçada, tremendo de frio, mergulhada até o pescoço, formando um enorme círculo, à espera do socorro que o capitão pedira pelo rádio. Surge de entre as borbulhas Apolinário sentado na barriga de Berenice, só as canelas dentro d’água.
- Tá frio aí, moçada? A Berenice ta quentinha... E gargalhava.
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A Thayse tem como objetivo tornar-se escritora, mas andava brigando com a inspiração; O David tem vontade de escrever contos, mas tem um medo bobo, já que escreve poemas tão bem. Para provocá-los, sgurei que escrevessem sobre o tema: um sujeito que sobrevive a um naufrágio graças a uma boneca inflável. Fiquei com inveja do que eles escreveram e resolvi entrar na brincadeira.
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