Naquele dia Ariosto levantara mais cedo que o habitual na esperança de ser o primeiro da primeira fila que encararia. Não dera certo, às cinco e meia da manhã era o vigésimo quinto em frente à agência da Previdência.
No resto do dia a coisa se repetiu: banco, a repartição, o cartório, de volta à repartição porque faltara uma certidão, novo banco, um lanche rápido em pé, escorado no balcão da birosca que só funcionava porque a “saúde pública” não funciona. Pisões nos pés, ambos, algumas vezes em cada um, orações e mantras pedindo paciência, dois ônibus, três vãs, um moto-táxi, subir ladeira, descer escadas... Muita provação para um simples pagador de impostos.
Agora, cinco e meia da tarde, subia no ônibus, cansado, os pés latejando dentro do sapato que parecia ter diminuído dois números, suado, pensando no chuveiro e na massagem da nega Zia. Lá no fundo, perto da porta de saída, um molecote com uma tremenda espinha na face esquerda e um livro aberto, a maior cara de cdf, o único em pé, além dele. Ainda bem que a hora do rush ainda não começara. Os quarenta e cinco minutos até sua casa não demoraria mais que as duas horas na fila do banco.
Passeando os olhos pelo interior do ônibus, percebeu que uma velhinha sem ninguém ao seu lado. Uma cadeira vazia! Sorte! No balanço do ônibus, a pasta cheia de papéis o impedindo de pegar no ferro com as duas mãos, foi dançando até a cadeira sem gente. No assento, um pacote, do tamanho de um pacote de açúcar, coberto por um papel pardo.
Olhou para a cara da velha na esperança de que ela recolhesse o embrulho lhe cedendo o lugar. A velha olhou para ele, apertou ainda mais a bolsa contra o peito, cara de nenhum amigo. Pensou em pedir gentilmente que ela liberasse o lugar, mas mudou de idéia. Suas experiências com velhinhas em ônibus não foram nada agradáveis e, naquele cansaço, estava sem qualquer disposição para um embate.
Da última vez, há duas semanas, ofereceu seu lugar para uma senhora, uns cinqüenta anos, e fora recebido com impropérios: “Safado! Sou uma mulher casada! Vá se meter com suas raparigas!”. Ainda lembra dos olhares de desaprovação que o obrigaram a descer na parada seguinte, vinte quadras antes do seu destino.
De uma outra vez, ofereceu-se para segurar a sacolinha de plástico que uma senhora carregava junto com sua bolsa. Ele estava em pé como ela, apenas desejava ser gentil e poupá-la de carregar aquele peso incômodo. Em troca recebeu um grito que assustou a todos e gerou uma corrente de ódio: “Ladrão! Quer levar minhas compras! Motorista, chame a polícia!”. Mais uma tremenda vergonha pública e a necessidade de andar quarteirões sem fim, nenhum passe para pegar outra condução.
Melhor ficar quieto, estava cansado demais para andar até em casa. Vai que aquela velha mal encarada tinha um pouquinho de compaixão, educação, piedade, fosse lá o que fosse, e lhe permitisse a sentada.
O ônibus seguia sua trilha e as coisas não mudavam. Ele olhava a velha, a velha olhava pela janela e o pacote lá, nem te ligo para os dois.
Já se iam vinte minutos de viagem, ele trocando a perna de apoio de tempo em tempo para poupar as batatas que já doíam, quando a velha levanta-se e dá o sinal de parada. Ele dá um passo para trás lhe permitindo a passagem, a velha passa e o pacote fica.
- Minha senhora, a senhora esqueceu esse pacote.
- Não é meu, não, moço. Alguém esqueceu aí.
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