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quarta-feira, outubro 18, 2006

Il Dolore, Gabriela Bernales


O Matador


Selestério, com seu cabelo sempre na gomalina, óculos escuros de lentes enormes, camisas quadriculadas de mangas curtas dobradas duas vezes para mostrar os bíceps avantajados, um indefectível palito entre os dentes quando não estava mascando fumo de rolo, era o homem mau do lugar. Nem mesmo os poucos que o conheciam desde menino e conseguiram viver até a fase adulta lembravam-se de terem visto um sorriso sob seu nariz.

Era o Capiroto encarnado, diziam as beatas. Quando sabia que Selestério estava na cidade, o delegado e seus samangos inventavam uma missão em uma roça distante. O jiz mandava um bedel procurá-lo para pedir permissão para qualquer coisa, até casamento.

Diziam que matara mais de cem. Mesmo os que viam exagero nesses números, não duvidavam.

Matara o ceguinho que sujara seu braço com lama de caranguejo ao lhe pedir uma esmola; matara o padre porque seu afilhado chorara ao receber a água benta fria na moleira durante o batismo; matara Godiana, a prostituta, por ela ter espalhado que fingira um orgasmo para deixá-lo feliz; matara o motorista da cata-nica semanal porque o ônibus levantara poeira sujando suas botas sempre lustradas; matara um vira-lata que se deitara na porta da bodega impedindo sua passagem, e assim e mais era composta sua lista desconhecida até o final.

Matava também por aluguel e não mostrava escrúpulo, era rápido e profissional nas missões. Matava homens, mulheres, velhos, crianças, cavalos, tartarugas... Lhe pagando o combinado, matava. O procuravam, ofereciam o trabalho, acertavam o preço, ele executava e parecia para receber.

Por duas vezes contratantes tratantes tentaram lhe passar a perna. O primeiro, valentão, simplesmente dissera que não pagaria, olhos nos olhos de Selestério. Não teve a chance de repetir o calote. O segundo encomendou o serviço. Selestério saiu por um lado em busca do encomendado, o encomendador saiu pelo outro rumo à saída da cidade. Ao voltar para receber seu dinheiro, ainda com sangue nos olhos, ao não encontrar o comprador ocasional, na mesma passada seguiu seu rastro. Reapareceu dois dias depois com o chapéu do, dizem, morto - nunca mais o viram - e no bolso muito dinheiro, mais do que o triplo do que pedira antes.

Ao passar todos se levantavam. Não tinham coragem de lhe dirigir a palavra sem que ele falasse primeiro, não ousavam não lhe responder quando ele solicitasse, se bem que ele nunca solicitava, um olhar por trás das enormes lentes escuras eram uma ordem.

Certa noite, numa roda de cachaça, alguém ousou cometer a indiscrição de comentar que Selestério estava diferente, já não tinha mais a mesma coluna ereta e cabeça em pé.

Caliostro, um gazo magrelinha de dentes podres, puxa-saco declarado do matador em troca de meia dúzia de moedas, ouvindo aquilo saiu em disparada para contar a Selestério que alguém falava mal dele. A cidade andava muito monótona, uma mortezinha poderia dar uma animada nas coisas.

Ao ouvir o relato do cagoete, sequer levantou uma sobrancelha para a decepção do dedo-duro.

Agora eram dois sujeitos sem brilho andando pelas ruas. Selestério que definhava dia após dia e Caliostro que perdera a fonte de suas seis moedas, alguns passos atrás.

Já não arregaçava as mangas, não escondia mais os olhos agora cheio de olheiras, nada mais de gomalina, suas botas antes pretas já se mostravam marrons de poeira, arrastava os pés.

Cresciam as especulações sobre tais mudanças. Era câncer; não, remorso; seus fantasmas voltavam para cobrar suas vidas; não, se convertera e era adventista; que nada, era apenas a velhice chegando...

As dúvidas e especulações tiveram fim na noite em que Belenilda, crioula enorme, peitos enormes, bunda enorme, voz num volume enorme, arrancou Selestério pelas orelhas do tamborete onde se aboletara tomando pinga.

- Já pra casa, vagabundo! - gritava - Isso lá é hora de hômi casado ficá nos buteco encheno a cara? Passa já!

E pelas ruas foi levando Selestério, tabefes na cabeça, tamancada no lombo, murro nas costelas, empurrão, tudo isso ao mesmo tempo que xingava o cordeirinho, a mãe do cordeirinho, a madrinha do cordeirinho...

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