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terça-feira, outubro 17, 2006

Fantasias d'água

O pequeno Agnobaldo, depois de alimentar as galinhas e os porcos e de ordenhar as vacas, pegava o caniço, a linha, o anzol, o embornal sempre carregado com a faquinha afiada, um rolo de barbante, chumbadas, um rolo extra de linha de nylon e mais algumas poucas tralhas que poderiam ser úteis na pescaria, ia para a beira do rio, sentava-se à sombra do ingazeiro e se divertia enquanto sonhava.

Na preguiça do meio da manhã lançava a isca que às vezes era minhoca, outras minhocuçu, tapuru de coco ou nacos de broa de milho que não fora consumida no dia anterior.

A canção das águas alimentava os sonhos. Não precisava dormir para viajar nos desejos, as melhores fantasias. Olhando as nuvens ou com o chapéu de palha cobrindo os olhos enquanto repousava a cabeça na pedra lisa, via-se pescando um bagre duas vezes seus tamanho, lutava para tirar o bicho da água, barbatanas abertas e afiadas como a espada do pirata que combatia, o homem mau, barbudo e fedorento que invadira a roça, a terrinha em que nascera, para roubar as galinhas, beber os ovos feito doninha, peiar os porcos e jogá-los num enorme saco de estopa e levar para a farra dos marujos embarcados. Agnobaldo, valente, lutava com o homem sem coração armado apenas com sua faquinha de pesca, salvava os bichos e expulsava o pirata com um pontapé na bunda. Sorria sob o chapéu vendo a fuga do bandido.

A cantiga do rio e o som da passarada eram a melodia que acompanhava seu namoro com Rosenilma, tão bonita em seu vestido de algodão florido, a fitinha verde prendendo os cabelos num rabo de cavalo que balançava suave como o pêndulo do relógio que tiquetaqueava na sala, hipnotizando-o por horas, ele olhando o ir e vir, contando sem saber contar.

Carregava a amada no colo para atravessarem o córrego e nem cansava; subia com a agilidade de um sagüi até o olho do pé de fruta-pão para pegar o fruto que ela insistia em querer; galopava mais rápido que as águas da cachoeira, a tomava pela cintura antes que a sela com a barrigueira solta que Rosenilma montava a jogasse ao chão. Pelas provas de seu amor, recebia um beijo apaixonado na boca da noite, a lua redonda e amarela saindo enorme do boqueirão.

No soninho acordado descia o rio até o mar, enfrentava as ondas gigantes que seu Olavo contava que vira quando viera da Europa, vencia a grande serpente que engolia barcos inteiros, vomitava seus móveis e nunca devolvia os homens e mulheres de volta à luz. Com o couro da serpente enchia os vagões do trem num enorme rolo furtacor; espalhava o couro por toda a praça, cortava em grandes quadrados e doava para os homens cobrirem suas casas, para as mulheres fazerem seus vestidos, para os pescadores construírem suas velas e para Rosenilma costurar as roupas dela e dele para suas núpcias.

Amando a paz da roça, o som veludoso das águas que nunca acabavam, descendo lá da serra, amando Rosenilma, seu pai Jedimar, a mãe Celinéia a quem ainda presentearia com a caixinha de música de madrepérola que vira no armazém do carcamano, salvando o mundos dos perigos, fazendo mil duzentos e cinqüenta e quatro gols na pelada de domingo, acertando a lata de querosene no outro lado da praça na primeira tentativa com o estilingue, Agnobaldo foi chamado à realidade. O caniço dá-lhe um puxão, o piau mordera, luta rápida, nem dá pra suar.

Retira o bicho do anzol, pendura por um barbante atravessando a guelra e passando pela boca, volta na mesma tranqüilidade, assoviando pela picada rumo a casa, o almoço balançando na ponta do caniço.

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