Pesquisar neste blog e nos da lista

quarta-feira, julho 04, 2007

Democratismo II


A ditadura acabou há 22 anos, mas deixou efeitos colaterais indeléveis. Com a Constituição impreaticável com que fomos presenteados, os direitos tão assegurados, sem exigir contra-partida, foi uma maneira que os políticos cassados ou escanteados pelos generais arrumaram para dizer que o cidadão era quem governava, não mais um poder central. Depois de sermos proibidos e vigiados, chegara a hora de mandarmos.

Ulisses Guimarães, que os jornalistas, imitando os estadunidenses, apelidaram de Senhor Constituição, era um democrata de verdade, mas um sonhador que demonstrou não conhecer bem seu povo, a educação tacanha que vinha recebendo havia 488 anos.

Se esse democratismo escapou pelos dedos das autoridades, passou a ser praxis para o cidadão comum também. Na onda revanchista subliminar, os pais que haviam levado porretadas das polícias, que haviam sido obrigados a se calarem para não irem para o calabouço, que eram obrigados a andar na tênue linha da legalidade, sob o risco de serem deportados ou sumirem numa noite escura, não queriam que isso se repetisse com seus filhos. Pior, não queriam ser eles os carrascos dos guris, como foram homens encapuzados os carrascos de conhecidos seus, de colegas da faculdade, de operários, de jornalistas e até de congressistas.

Viram-se no direito de darem total liberdade aos filhos, desobedecer as leis porque essas eram sinônimo de ditadura e opressão, burlar o código de trânsito deixando seus filhos menores levarem a namoradinha ao cinema ou os amiguinhos da mesma idade à choperia. Soldados eram sinônimo de repressão e não de segurança pública, como deveria ser. Se as leis serviram para os amordaçar por 21 anos, elas passaram a não mais serem confiáveis, fosse que lei fosse. E assim surgiram as leis que "pegam" e as que "não pegam".

Quando sem-terras e sem cérebros invadem Itaipu, recebem ordem judicial de reintegração de posse, vão aos jornais e dizem que o juiz foi ditador; quando alunos (estudantes é algo mais nobre), invadem a reitoria da Usp, depredam o que encontram pela frente, saqueiam armários e se recusam a cumprir mandato de reintegração de posse, usam do mesmo discurso: tal mandato é um ato ditatorial.

Pois medidas legais, que seguem leis discutidas no Congresso, votadas e aprovadas por parlamentares legalmente eleitos com o voto da maioria dos eleitores, não são atos ditatoriais. Por democracia entenda-se cumprimento de leis que zelam pelo bem estar de todos, preservação das propriedades públicas e privadas.

Se existem leis fracas, leis imbecis, se os parlamentares andam mais sujos que consciência de adúltero, se os juízes vendem sentenças a preço de Ferraris, é outra história. Uma coisa não tem, diretamente, a ver com outra. Ordenar que invasores devolvam a posse a quem de direito é uma lei existente nos países onde a democracia é muito mais sólida do que aqui. É legal e deveria ser respeitada tanto pelos filhos dos generais, quanto pelos filhos dos comunistas e pelos filhos dos alienados.

Se o final da ditadura deveria ser o reinício da democracia, terminou gerando um democratismo míope. E esse democratismo é o pai dessa crise de autoridade que reina no país.

Os auto-intitulados bem informados e pensantes chamam o zé-povim de burro porque este não deixa a popularidade de Lula cair, mesmo as instituições esfacelando-se a olhos nus. Não param para analisar por que isso acontece.

Se são três os poderes que regem um país democrático e dois deles não saem das colunas policiais, cada dia com crimes novos e novas (ou velhas, depende do ponto de vista) caras estrelando os escândalos, o terceiro se sobressai. São juízes vendendo habeas corpus e vendendo sentenças, parlamentares sonegando impostos, vendendo votos, fazendo caixa dois e mais um Código Penal inteiro, até mesmo encomendando assassinatos de pares seus, Lula, com toda a falta de autoridade que herdou de FHC, e falta de cérebro, que herdou dos pais, mas dono de um inegável carisma, sai-se como o bom moço. O cidadão comum quer ter esperança que as coisas andem no país. Esmola, assistencialismo, paternalismo ou não, os programas sociais fazem com que o pobre coitado que dança como urso panda, de saiote, em cima de chapa quente para defender a comidinha de todo dia, veja o presidente com olhos melhores do que os com que vê juízes e parlamentares. É mais uma compensação do que uma certeza.

A ditadura acabou, sim, mas a democracia ainda não nasceu.

Nenhum comentário: