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sábado, agosto 11, 2007

Coisas da Corte



Dias cheios, estresse no trabalho, projetos a curto prazo e ocupando todo o tempo e a Justiça, mais uma vez me intima para participar do Conselho de Sentença do júri que se realizou ontem.

Ao chegar ao fórum, procurei saber sobre quem seria julgado, qual o crime. Era o caso de um soldado da Polícia Militar que havia matado um assaltante em 1992. Quinze anos! Me preocupei. Julgamento de militares é sempre um caso tenso. Tememos a policia, quando deveríamos confiar nela como nossos defensores legais. Eles são solidários entre si, se protegem como podem e, numa cidade pequena como a minha, eles sabem quem são cada um, ainda mais eu que, sem querer parecer presunçoso, sou bastante conhecido. Tenho amigos desde o primeiro escalão da prefeitura até a mais pobre família da periferia.

Lógico que com minha "sorte" fui sorteado e nem o advogado de defesa quanto o promotor não me dispensaram.

Naquele ano, por volta da nove e meia da noite, os cabos Carlos e Messias foram atender a uma chamada de uma senhora que dizia que sua farmácia estava sendo assaltada. Os bandidos aproveitaram o momento em que ela e o marido, que moravam na sobreloja, chegavam da igreja e entreabriram a porta da loja para atender a uma amiga que os acompanhava e não passava bem. Assim que eles entraram, os bandidos, que já haviam rendido o vigilante da rua, entraram também, e pediram o dinheiro e alguns remédios alucinógenos.

O marido levava consigo um envelope com pouco dinheiro que havia sido arrecadado durante o culto, dinheiro da igreja, e o entregou, mas disse que não vendia o medicamento que eles pediam. Não acreditando na palavra no senhor, os marginais o levaram para o escritório em busca de um cofre, que não havia e de medicamentos. Aproveitando a confusão, a mulher do farmacêutico pegou o telefone sem fio, trancou-se no quarto com a filha pequena, e ligou para a poícia.

O cabo Carlos, que comandava a viatura, sujeito muito querido e conhecido na cidade, policial experiente, relaxou. Imaginou que os bandidos já haviam fugido, uma vez que a senhora estava dentro da loja assaltada, e não se precaveu. Achando a farmácia com a porta entreaberta, já foi entrando. Um dos bandidos o recebeu com um tiro que o acertou no peito esquerdo. O cabo Messias, também relaxado, havia ficado dentro da viatura e não teve tempo de pegar sua arma. Ao mesmo tempo em que atirava no Cabo Carlos, os bandidos saíram correndo, um em cada direção. Vendo o colega ferido, Messias correu para dar-lhe auxílio, não se preocupando no momento com a fuga dos bandidos.

Poucos metros à frente, um soldado, de folga naquele dia, namorava dentro do carro e se abaixara ao ouvir os tiros, imaginando que eram para si. Um dos bandidos passou correndo pelo seu carro com a arma na mão. O soldado Cardoso, saiu do carro e viu a viatura parada e o cabo Messias correndo para dentro da loja. Saiu correndo pra lá, imaginando que alguém havia se ferido. Ao chegar, sem pestanejar, ajudou Messias a colocar Carlosdentro da viatura e assim que o carro arrancou com a sirene ligada, Cardoso voltou para seu carro, mandou a namorada descer e partiu à caça do rapaz que havia passado correndo por ele.

A caçada não durou muito. Conhecendo bem a região, Cardoso encontrou o bandido se escondendo entre os boxes do merado municipal. Desceu do carro, arma em punho, e deu ordem de prisão ao bandido, Ariosvaldo, que respondeu com três tiros. Cardoso, escondendo-se atrás do carro, também deu três disparos. Um acertou Ariosvaldo também no peito esquerdo. Cardoso, com ajuda de pessoas que trabalham no mercado, colocou o ferido dentro do seu carro e o levou para o hospital.

Ao chegar lá, recebeu a notícia que o cabo Carlos havia morrido e o bandido que ele próprio acertara também morreu antes de receber os primeiros socorros.

Em companhia de messias, foi ao quartel apresentou-se ao comandante, contou os fatos, entregou sua arma e ficou à disposição da PM para as investigações.

Na época, ações desse tipo eram investigadas pela própria polícia. Foi aberto um Inquérito policial Militar que, a exemplo do que ocorre na Justiça comum, é demorado, burocrático e nem sempre inteligente. O caso arrastou-se até 1996, ano em que foi promulgada a lei 9299 segundo a qual incidentes envolvendo policiais militares em que houvesse morte, passavam a ser investigados e julgados pela Justiça comum. O processo que já se arrastava por quatro anos, voltou ao ponto zero, recomeçou, aproveitando apenas os nomes das testemunhas e pessoal envolvido.

Novas oitivas, novos depoimentos e toda aquela lentidão que todos conhecemos.

O soldado Cardoso recebeu uma condecoração por bravura, foi promovido a sargento, mas teve que devolver a patente, voltando a soldado, porque o tal processo o impedia de ser promovido, até que fosse julgado definitivamente. Para completar, o pobre soldado não tinha dinheiro para pagar um bom advogado. Aí entrou a Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar da Bahia, que comprometeu-se a bancar os honorários do advogado.

Se por um lado, isso tirava um peso dos bolsos do soldado, por outro, arrumaram-lhe um daqueles advogadozinhos sem compromisso com a causa, sem falar que era um advogado de Salvados, mais de 700 quilômetros distante da cidade em que ocorrera o fato. O cara faltava a audiências, procurava adiar o julgamento, procratinava o tanto que podia e assim se passaram onze anos, até que o juiz local, cansado de tantas manobras e atrasos, deu um ultimato ao advogado que alegou problemas de agenda para fazer-se presente. O juíz o afastou do cargo e nomeou um advogado dativo par defender o soldado Cardoso.

Foi o julgamento mais rápido de que já participei. Na média, os julgamentos vão até as dez e meia, onze horas da noite, os mais complexos vão até as primeira horas da madrugada. Esse nos liberou às quatro e meia. Opromotor, que tem direito a duas horas de discurso, usou apenas uma; o advogado, também com direito a duas horas de discurso, usou apenas 45 minutos. Não houve réplica por parte do promotor, uma vez que ele hava pedido a absolvição do rréu por legítima defesa. Na verdade, só houve julgamento por causa do depoimento do cabo Messias, que dissera, durante o processo policial, que o soldado Cardoso havia dito, ainda no hospital, que havia parado o carro a dois metros de Ariosvaldo, jogado os faróis sobre ele e atirado. Acontecendo assim, esvaia-se a legítima defesa e o caso transformava-se em homicídio simples. O cabo Messias por pouco não comprometeu a absolvição do colega. Isso só ocorreu por conta da perícia técnica que comprovou os disparos feitos pelo bandido.

O outro bandido, aquele que havia desaparecido naquela noite, alguns dias depois foi preso por outro crime e, quando era transferido para a delegacia dentro de uma viatura da Polícia Civil, "homens encapuzados" pararam o carro oficial, retiraram o preso do interior e o fuzilaram sem a reação dos policiais que o acompanhavam, "rendidos pelos seqüestradores". esse caso nunca foi esclarecido. Fácil deduzir o que houve.

O soldado Cardoso foi absolvido por seis votos a um, causando surpresa esse voto contrário, uma vez que a própria promotoria havia solicitado que nós votássemos pela sua soltura. provavelmente um dos jurados cometeu o erro a colocar a cédula "não" dentro da urna, quando estávamos dentro da sala secreta.

Acho que fizemosa coisa certa, o soldado Cardoso, quinze anos convivendo com a insegurança do julgamento, mal assessorado por seu advogado, promovido e rebaixado, detentor de uma folha limpa e sem qualquer outro incidente que comprometa sua postura diante da sociedade, aquele que, mesmo estando em seu dia de folga, teve o desprendimento e a coragem de socorrer um colega ferido e saído, sozinho, à caça de um bandido armado e que vinha praicando assaltos e estupros contunadamente, não merecia ser penalizado. Estamos todos com a consciência tranqüila por termos feito o certo.

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