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quinta-feira, fevereiro 09, 2006

"O dinheiro não é tudo e, muitas vezes, não é nem mesmo suficiente."


Capinzal, SC

"E no entanto, ela se move..."


Ninguém na praça àquela hora. De vez em quando o vigia noturno passava ali em sua ronda pelo quarteirão e não via qualquer coisa fora do normal. Não ver qualquer anormalidade nas ruas de Capitel Santo Antônio, bairro distante de Caínzal, cidade com menos de vinte e cinco mil habitantes, é quase uma redundância. Na pequena cidade catarinense, o máximo que acontecia era uma discussão na feira por conta do repolho. O chucrute estava ficando caro...

Vigia noturno era apenas uma desculpa de alguns bons amigos para dar uma ocupação para Wilfredo, pai de três guris.

Na noite fresca de março, Wilfredo passeava pelas ruas calçadas, radinho de pilha no ouvido, apito no bolso e o despreocupado ar de quem sabia que não encontraria sequer ladrão de galinha. O cacetete pendurado no cinto era apenas cacoete da profissão.

Em sua terceira passada, em posição diametralmente oposta à em que se encontrava, viu o doutor Asdrúbal sentado sob a luz do poste, vestindo um pijama de listras. Ficou curioso em saber o que levava o advogado a colocar-se ali àquela hora, mas conteve-se. Primeiro, porque o doutor negava-se a contribuir com seu minguado salário, o que o isentava de vigiar a casa do rábula; segundo, porque o doutor Asdrúbal fora o advogado da ferrovia em que Wilfredo trabalhara e o fizera perder todo o dinheiro a que se jlgava merecedor na causa trabalhista que abrira contra os ex-empregadores. O advogado jamais seria perdoado pelo vigilante.

Tentando ignorar o advogado, Wilfredo continuou sua ronda.

Mais uma volta no quarteirão, não pôde evitar uma olhadela em direção ao banco onde Asdrúbal se encontrava. Teve a impressão de que ele arfava, com a cabeça caída sobre o peito. Estaria o doutor passando mal? Rescostou-se em uma árvore e, por alguns minutos, enquanto pitava, não desprendeu os olhos do outro homem. Quando já se preparava para retomar sua caminhada, viu Asdrúbal cair de lado abruptamente e, com as pernas penduradas do banco, o tronco dilatar-se e comprimir-se com sofreguidão. O advogado tentava respirar e o ar lhe faltava.

Wilfredo tirou o apito do bolso e o soprava a todos pulmões enquanto corria em direção ao banco onde se encontrava seu desafeto.

Aos poucos as janelas ao redor iluminavam-se, algumas eram abertas mostrando os moradores assustados atrás de suas caras de sono, outros saiam para as varandas e calçadas. Todos viam Wilfredo socar o peito do advogado e soprar forte em sua boca na tentativa de dilatar-lhe os brônquíolos e refazer o coração retomar o pulso.

Ainda sonolento o médico, doutor Astrogildo, logo percebeu o que acontecia. Entrou em casa correndo, recolheu sua maleta com os apetrechos médicosao mesmo tempo re ordenava à mulher que ligasse para a ambulância e, acelerado, foi ajudar o vigilante que já suava em seus esforços de salvar a vida daquele que por tantas vezes desejara que morresse.

Os primeiros socorros ministrados por Wilfredo, aprendidos num curso obrigatório para os funcionários da ferrovia, ressuscitaram o homem que depusera contra ele.

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