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sexta-feira, março 03, 2006

"Querer é poder" é autoconsolação de frustrado
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Bonito quadro


Cleovaldo e a Bicicleta


O pequeno Cleovaldo não perdia a oportunidade de uma data festiva, fora as do dia-a-dia, para pedir uma bicicleta ao pobre pai, seu Godofredo. Natal, aniversário, dia das crianças e até no dia dos pais, Cleovaldo estava lá, pendurado nas pernas da calça do pai, pedindo sua bicicleta.

O pobre Godofredo, como todo bom pai, apaixonado pelo filho, sentia uma tristeza no peito por não presentear o filho. Biscateiro que catava latinhas pelas ruas, ajudava esporadicamente na borracharia, carregando cargas de caminhões, fazendo pequenos serviços de pedreiro e encanador, seu Godofredo mal conseguia alguns trocados para o aliguel do barraco, água, luz e comida. Não tinha como comprar uma bicicleta de quarta mão que fosse, para o rebento.

Para que Cleovaldo não tivesse um futuro como o seu, exigia que o garoto estudasse e o filho se dava muito bem com as notas.

No dia do seu décimo segundo aniversário, enfim, Clodoaldo ganhou o tão sonhado presente. Deu galo na cabeça e Godofredo encheu a despensa de comida, comprou doces e balões para a festa do garoto e lhe deu a bicicleta. Previdente, o pai comprou uma das de adultos, para que não ficasse pequena em pouco tempo, para o filho que se espichava, como é comum nos pré-adolescentes.

Para cima e para baixo, subindo e descendo ladeiras, se via Cleovaldo feliz, pedalando um sonho palpável. Pediu ao pai para estudar à tarde no ano seguinte e pela manhã entregaria jornais ou levaria as comprar dos clientes do supermercado.

Terminou o segundo grau como o melhor da sala e, com a ajuda dos estudos solitários à noite, passou no vestibular. I e oltava da faculdade com sua magrela. Com os salários de estagiário ia pagando as prestações do consórcio de uma moto.

Depois de um lance adquiriu o veículo e tornou-se moto-boy durante o dia e estudava à noite.

Formou-se com louvor e se tornou um conceituado clínico geral na pequena Ijuína, no Mato Grosso, para onde se mudara seduzido pelo ótimo salário pago pela prefeitura.

Com a renda acima da média, pôde comprar um carro importado suficientemente forte para andar por aquelas ruas e estradas acidentadas e mal conservadas e, ainda por cima, castigadas pela chuvarada amazônica.

No dia seguinte à farra de uísque e cocaína na casa do juíz, doutor Cleovaldo esqueceu um rolo de gaze no abdômen da mulher de quem extraíra a vesícula biliar.

Vítima de uma infecção generalizada, dona Lucidalva faleceu e a família processou o médico. Com tantas evidências e testemunhas contra ele, doutor Cleovaldo precisava de um bom advogado, o melhor.

Mesmo com todo o corporativismo da classe médica, estava difícil defender o médico. Percilônio Melquíades, o prefeito que pagava seu salário, era candidato a deputado estadual e não queria seu nome envolvido num escândalo como aquele. Demitiu o doutor Cleovaldo.

Sem renda e envolvido até o pescoço com a lei, o médico começou a desfazer-se de seus bens para poder pagar os honorários do doutor Edemerval Sabóia, que viera de São Paulo para defendê-lo.

Vendeu o carro importado e comprou um corcel 82, mas o doutor advogado comia mais seu dinheiro do que uma impingem comia a pele dos garotos pobres a quem atendeu no posto de saúde.

Não demorou para ver-se obrigado a vender também o Corcel 82 e comprar uma moto igual à antiga, dos tempos de moto-boy.

Mesmo gastando tudo o que tinha, Cleovaldo perdeu a causa. Teve a licença para medicar e o diploma cassados.

Hoje o ex-doutor anda de bicicleta, entrega jornais e ajuda o pai a consertar pneus, levantar paredes, carregar caminhões...

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