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sábado, maio 27, 2006

Pra quê limpar os sapatos se eles vão se sujar no chão?



Itapipoca

No topo


Gecilene e Claudine, entediadas em sua meninice, cansadas de brincar no terreiro, desejavam aventuras novas. O que fazer naquela tarde modorrenta?

Os bonequinhos de areia e água já ressecaram, se desfaziam ao toque; pular corda já perdera o encanto; não tinha graça brincarem de roda só as duas; queimada idem... Embaixo da mangueira divagavam sobre a melhor diversão.

Ora! Tão pertinho! Olhando a serra atrás da casa, Gecilene sugeriu que a escalassem. Os meninos sempre iam lá em cima e falavam da vista, da antena de televisão, das nuvens ao alcance das mãos. Sem dona Quedma por perto para atrapalhar seus planos foi fácil convencer a irmã e lá foram, fingindo serem aquelas alpinistas que viram na matinê de sábado no cinema.

Duas intrépidas aventureiras escalando o Everest, as prmeiras mulheres de Itapipoca a verem o mundo do alto. E narravam imaginando a voz do homem do cinema, "Claudiene e Gecilene, as bravas nordestinas que sequer imaginavam o sabor da neve, escalam as escarpas perigosas, passo a passo, desviando-se das avalanches, rápidas como teiús, baterão o recorde mundial de escalada..."

As pernas não falhavam, pernas fortes, treinadas nas brincadeiras de rua e o nado no riacho. As mãos ajudavam e se divertiam explorando as pedras e tateando aquelas plantinhas diferentes que não se encontravam lá embaixo. Os olhinhos atentos viam ninhos escondidos nas pequenas saliências entre as rochas, daí entendiam porque as andorinhas dormiam na serra e iam e voltavam durante todo o dia. Viam os calangos roubando ovos e fazendo a festa.

Corajosas, não iriam mais só até o primeiro morro, queriam mais, Everest era o morro mais alto do mundo, não se contentariam com o segundo, precisavam ir àquele onde estava a torre de tv.

O suor lhes dava o prazer da luta e não se deixariam vencer no meio do caminho. Já não falavam, reservavam as energias e não queriam a boca seca.

Faces afogueadas e coração batendo forte, chegaram ao topo. Maravilhadas viram toda a cidade do alto. As torres da igreja, sua casa, o hospital, o colégio onde estudavam, a estrada de ferro, a casa de Bezenice... apontavam descobrindo cada lugar onde já estiveram. Lá longinho estava o Cristo, que agora parecia tão baixinho, ao contrário de quando estiveram lá. Sempre haveria um lugar mais alto.

A casinha onde deveriam estar os equipamentos da retransmissora da tv não lhes permitia ter uma visão de volta completa.

"Vamos subir na antena e ver mais do alto?", sugeriu Claudiene. Proposta aceita, mãos e pernas à obra. A subida não foi tão simples quanto foi a pelas pedras. O metal frio e enferrujado dos degraus fininhos incomodava, machucava e dava medo, mas não desistiram. Lá em cima havia uma plataforma com um baixo parapeito. Dali podiam ver muito mais.

Ao sul viam o deserto, amplo e vermelho, os pés de carnaúba por todos os lado, a rodovia que vem de Fortaleza, atravessa Itapipoca e segue para Sobral. Lá no norte imaginavam ver as dunas da Praia da Baleia e muitas e muitas outras montanhas, entenderam porque Itapipoca era a "cidade dos três climas". A cidade, seu universo, agora parecia um quase nada, apenas um borrado naquele mundo tão grandão.

Não conseguiam alcançar as nuvens naquela tarde ensolarada, mas a viam bem mais perto, passando rápido. Os pássaros voavam mais baixo do que a plataforma, só os urubus ultrapassavam sua altura. Não queriam mais descer. Sentaram-se na plataforma e exploraram com a vista e uma alegria ribombando no peito, cada centímetro daquele panorama. Uma vontade enorme de abraçar aquele universo e niná-lo entre os braços.

Viram o sol, devagarinho, se escondendo por trás de outras serras, vermelho mágico que se despedia dali e imaginavam que estaria indo para outro lugar que se encontrava no escuro agora. Precisavam conhecer que lugar era esse que roubava seu sol.

Já escuro, depois do final do espetáculo das cores, desceram tristes, dona Quedma deveria estar desesperada à sua procura. Em silêncio desceram da antena e da serra. Não trocaram palavra, mas cada uma sabia o que se passava pela cabeça da outra. Um dia seguiriam a rota do sol e conheceriam outras terras, outras serras, outras Itapipocas.

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