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domingo, setembro 17, 2006


Coisas da Roça

Certas coisas saem bem melhor quando de supetão do que quando programadas. Aliás, quase sempre, em se tratando de programas de lazer, o improviso é mais proveitoso e prazeroso que o planejamento.

Ontem, às cinco da madrugada, um amigo me acorda com um telefonema. Estava indo para sua fazenda vacinar o gado contra aftosa e me convidava para ir junto. Passada a irritação inicial por ter sido acordado àquela hora, ainda mais depois de uma noite de sexta-feira de muita cerveja, cedi. Gosto do bucolismo, do ambiente silencioso das fazendas. Não iria mais conseguir dormir mesmo.

Depois de 40 minutos por estradas de terra, chegamos na fazenda por volta das sete horas. Não é uma roça, mas uma fazenda de verdade. Cinqüenta alqueires de pastos, florestas, rios, reprezas e vaca à beça.

Fomos recebido por seu Alcides e sua esposa, dona Cecília, casados há 51 anos. Um casal muito simpático e cheio de prestezas. Na mesa um café da manhã como aqueles que a gente vê nas novelas de época. Broa de milho, tapioca, suco de abacaxi, coalhada, requeijão, café,biscoitos e sabe-se lá quantas calorias mais. Enquanto comíamos seu Alcides dava as notícas dos últimos trabalhos para o patrão. Os vaqueiros descarregavam a caminhonete que ia cheia de rolos de arame farpado, grampos, ferramentas, um isopor com as seringas e os frascos de vacina.

Dia de vacinação está para fazendas assim como bater laje está para a construção civil. Os vizinhos aparecem para fazerem os trabalhos em mutirão. Muita comida antes de começarem a tarefa estafante, depois cada um assume seu posto e mãos à obra.

O curral é dividido em quatro pequenos cercados. No maior fica o gado que será vacinado, no segundo as vacas são colocadas aos poucos. Dali seguem por um corredor estreito por onde só conseguem passar em fila indiana. Na extremidade final uma pequena porteira de correr, na na entrada do corredor por onde entra um vaqueiro passa um pau para que não consigam recuar. São colocados de seis a nove reses por vez no corredor. O vacinador vem da primeira à última aplicando o medicamento.

Todos vacinados, um vaqueiro abre a cancela e os animais passam para o terceiro curral. Enquanto os vacinados são retirados o pau do final do corredor é retirado e outra leva segue pelo corredor e isso se sucede até que o último bovino seja medicado.

No quarto curral são colocados os filhortes menores. É uma maneira de evitar que sejam pisoteados pelos maiores. Terminada a primeira leva de vacinação, todo o gado é tangido para um dos pastos e os vaqueiros trazem as boiada seguinte.

Enquanto os vaqueiros trabalhavam, sentados a uns vinte metros do curral, sob uma árvore, eu e o fazendeiro conversávamos e anotávamos o total de animais vacinados. A distância é para não atrapalharmos o trânsito da boiada. Acostumada a ficar livre no pasto, a manada fica arisca e, se nos colocarmos numa posição próxima às longarinas do curral, podemos impedir o trabalho dos vaqueiros, mesmo que fiquemos quietos e calados. Basta a primeira vaca nos ver, evita seguir por aquele caminho e as que estão atrás a seguem.

Olhando aqueles desfile dos bichos, entendi porque surgiu a história de contar carneirinhos para dormir. Dá sono ver passar uma a uma tantas vacas. Por volta das nove horas fez-se um intervalo. Haviam sido vacinadas por volta de 400 vacas. É muito bicho! Os vaqueiros tangiam as vacas vacinadas para o pasto, enquanto outros quatro vaqueiros iam para o pasto mais distante trazer a manada de lá.

Eu e o patrão tomávamos um cafezinho enquanto esperávamos e já sentíamos o cheirinho da feijoada que dona Cecília praparava no fogão a lenha. Cheirinho bom de roça.

Seu Alcides merece comentários especiais. É um negro muito forte, a despeito de sua idade incerta que ele diz ser sessenta e oito, mas, desconfiam os que o conhecem, que já deva passar dos oitenta. Entroncado, a pele muito escura e os cabelos branquinhos, uma voz grossa de barítono, nos delicia com seus causos no dialeto que é preciso muita prática do ouvinte para entender todas as palavras e seus significados.

Já monta pouco sentindo o peso dos anos, mas da varanda consegue administrar todos os trabalhos da fazenda e é respeitado e admirado pelos comandados. Sabe exatamente quantas vacas têm, onde está cada uma, quantas estão paridas e quantas estão prenhas, quanto cada uma engordou desde a última pesagem e consegue determinar o peso de cada animal com uma simples passada de olhos. Está com catarata e isso o chateia. Não consegue mais abrir um coco com uma terçadada só, a vista o engana e a lâmina sempre acerta fora do lugar que projetava. Eu vi tristeza real naqueles olhos quando me contou isso.

Com o almoço já adiantado, dona Cecília nos deixou à vontade em sua casa. Iria na roça de cacau catar algumas amêndoas que já estavam no ponto. Vestia uma calça comprida por baixo da saia, um chapéu de palha com abras muito largas por sobre o lenço e botas de cano alto. Na roça de cacau a presença de cobras é muito comum, tinha de se precaver.

Ficamos por ali, eu perguntando das coisas, seu Alcides me contando os causos e o patrão traduzindo para que eu entendesse.

A leste já víamos a Serra do Mar e seus incontáveis picos de pedra cinza. Dezenas de pastos bem divididos por cercas, bolsões de floresta, os boqueirões nos quais sempre havia um riacho ou uma represa. A água que corre nos canos da casa vem de uma fonte de água mineral que mina a novecentos metros de altura e desce por gravidade até a sede da fazenda. Toma-se água diretamente da torneira sem correr o risco de doença. Pela primeira vez na vida tomei banho de água mineral.

Proseávamos na varanda e seu Alcides pedia desculpas por não olhar para nós enquanto conversávamos, estava assuntando a vinda da boiada que surgia num morro lá longe. Seus olhos treinados, embora já não tão bons, viam as vacas que se distanciavam do rebanho, percebiam o vaqueiro mais violento que tratava os bichos com força desnecessária, adivinhavam quantos animais haviam na tropa. Não perdia um detalhe. Ouvíamos um ou outro aboio que se tornavam mais perceptíveis conforme o grupo de animais e homens se aproximava. O barulho do tropel também se fazia mais audível. Era um trovão baixo e prolongado. Bonito de se ouvir.

O gado era encurralado, cada vaqueiro assumia seu posto e recomeçava a labuta de dividir em grupos, colocar no corredor, vacinas, confinar no quarto curral, eu e o fazendeiro contando. Eu anotando, seis em seis, sete em sete, cada grupinho vacinado.

Para mim uma beleza de ver, para aqueles homens apenas rotina.

De repente seu gabino, um dos vaqueiros, dono de uma pequena fazenda vizinha que estava ali apenas pelo prazer de ajudar, pediu silêncio. O povo da roça é educado, mas não é delicado como nós, urbanos, tentamos ser quando estamos entre amigos. Para eles o que existe é seriedade. Quando um fala os demais escutam, mesmo que não concordem. Discutem seus pontos de vista aos gritos, mas cada um por vez. E quando alguém tem razão, não se discute, cumpre-se. Seu Gabino, por volta de sessenta anos, o mais velho entre os que tropevam e vacinavam, é querido e respeitado por todos. Para os demais não é apenas Gabino, mas seu Gabino, o que mostra uma deferência inquestionável por parte dos demais. Do nada, ele gritou "silêncio! Pára o barulho! Cala a boca!". E todos respeitaram. Não sabiam o que acontecia, mas sabiam que era algo sério.

Com todos em silêncio, apenas um mugido ou outro no ar, odas as atenções voltadas para seu Gabino, ele se vira de frente para o boqueirão onde ficava a roça de cacau, escondida entre pedaços da Mata Atlântica,e aí todos pudemos ouvir, longe, baixinho, seguido de ecos cansados, o grito de uma mulher. Eu não entendi o que ela gritava, mas seu Alcides, lá da varanda falou enquanto descia os degraus quase correndo, "é a Cecília". Como seu Gabino ouvira os gritos de dona Cecília não sei, ainda mais que ele estava no meio da barulheira de tropel e aboios.

Seu Alcides corria para o cavalo que seu neto, Luciano, havia deixado amarrado na mesma árvore sob a qual eu e o fazendeiros nos escontrávamos sentados. Os vaqueiros montados abandonavam a tropa e disparavam em direção aos cacaueiros, Luciano, a pé corria pelo pasto, O patrão corria para a caminhonete e eu, ainda atônito, sem perceber o que se passava direito, apenas adivinhava a seriedade do que se passava, sem ter a mínima idéia do que fosse. Corri atrá do Luciano. Éramos uns doze homens correndo a pé, montados ou de carro para um mesmo ponto, que eu não sabia onde era, apenas seguia os outros.

Morro abaixo e já vendo o morro acima que teria que escalar, quase me arrependo de ter me deixado seguir a vontade. Nessas horas que a gente se arrepende de ser um citadino ocioso. O patrão desistira de seguir. O capinzal molhado pela chuva da noite anterior deslizava, o terreno irregular o fazia sacudir. Adivinhando um acidente, preferiu parar no meio do morro e esperar as notícias. Eu ainda corria tentando acompanhar o Luciano, moleque de uns dezesseis anos, leve e cheio de saúde, que já havia se distanciado uns duzentos metros à frente. Agora eu já entendia o que dona Cecília dizia: "Alcides! Povo! Me socorre!".

Quando me juntei aos outros, meio palmo de língua pendurado para fora, eles cercavam dona Cecília. Seu Gabino, ajoelhado, havia rasgado a perna da calça comprida de dona Cecília, eu via o sangue, muito sangue, e ela apontava para os outros "tá ali". Seu Alcides era contido pelos outros, quase aos prantos, sua pele negra mostrava-se quase branca, os olhos vermelhos e arregalados. Me aproximando mais, vi os dois furos na perna da dona Cecília de onde saía sangue em abudância, ela havia sido picada por uma cobra, eu adivinhava. Ela dizia que fora "ofendia" pela bicha.Um dos vaqueiros chegava com a jararaca numa das mãos e a cabeça na outra. Dona Cecília havia matado a cobra som o podão.

Vendo o pânico e o panavueiro que se formava, vi a necessidade de colocar alguma ordem. A humildade dos homens da roça os faz aceitarem palavras sensatas de homens letrados, como eles mesmos dizem. Sabendo da necessidade de atendimento rápido no caso de picadura de cobra e que ali não havia soro anti-ofídico porque esse tem que ser mantido sob refrigeração e que ali não havia qualquer tipo de refrigerador, falei para pegarem-na no colo e levá-la para o carro que estava parado no meio do morro. Dona Cecília, forte como todas as mulheres do campo, disse que não precisava, iria montada. Um dos rapazes lhe ofereceu o cavalo. Ela mondou com nossa ajuda e pô-se a galope, os demais em corte. Enquanto subia o morro, retirei o celular do bolso, na esperança que houvesse sinal de linha. Nenhum.

Seu Gabino falou "lá de cima pega", vendo meu desapontamento. Meu ritmo de subida era lento, cansado. Um dos rapazes voltava. Parou perto de mim, me deu o cavalo e disse que o patrão estava esperando por mim, que eu fosse rápido. Não sou bom cavaleiro, pelo contrário, morro de medo de cair de uma cela, desde que vi um garoto de onze anos cair e ser pisoteado na cabeça pelo cavalo que montava, morrendo imediatamente. Isso aconteceu há uns dez anos, pouco tempo depois de eu ter chegado aqui em Eunápolis. Mas não era hora de ter medo. O cavalo era bem treinado e eu segui um antigo conselho que me deram: seja firme e mostre para o cavalo que quem manda é você.

Enfiei os calcanhares na ilharga do animal, soltei as regras e galopei o quanto me achava capaz de fazer. Nada mal. Cheguei rapidinho ao carro. Dona Alice já se encontrava sentada na cadeira do carona. O patrão mantinha o motor ligado, já manobrado com a frente voltada para o alto do morro. Apeei e me joguei sobre a carroceria. O carro caminhava escorregando, os cavaleiros e os a pé atrás, prontos para darem algum auxílio.

Atingimos a estrada de terra e vi seu Gabino desgarrar do grupo e acelerar o cavalo pelo pasto, paralelamente à nossa rota. No alto do morro o celular deu sinal de vida. Liguei para o serviço de emergência. Por sorte o médico de plantão é um amigo, quase vizinho e primo do fazendeiro. Expliquei para ele o que acontecera, que ele nos mandasse socorro. Ele me perguntou "ela já está lá em cima?", entendi que ele deveria se referir à estrada principal, justamente para onde nos dirigíamos. Eu confirmei. Me perguntou qual a espécie da cobra, eu disse jararaca. Tem certeza? Eu disse que não, não conheço cobras, mas seu Alcídes dissera que sim. Ótimo, se seu Alcides falou, então é jararaca. Mandaria o soro certo.

O serviço de ambulância não costuma atender na zona rural, ainda mais num local a mais de quarenta quilômetros da sede, onde se chega só por estradas de terra mal conservadas. Sei que estava usando dos privilégios da amizade, minha e do fazendeiro, pelo médico nosso amigo, mas a causa era justíssima, sem falar que não acho que esse tipo de diferenciação de cidadãos, se da roça ou da cidade, deveria existir.

Estávamos indo para a fazenda de Gabino, entendi por que ele galopava tão rápido enquanto subíamos o morro. Ao chegarmos, o sangue da perna de dona Cecília estancara, não havia mais nada que pudéssemos fazer a não ser esperar a ambulância que não demorou muito. Uns trinta minutos, mais ou menos, desde a hora em que eu telefonara.

Nosso amigo médico, na calma que só os médicos têm nessa hora, nos cumprimentou rapidamente, deitou dona Cecília na maca, aplicou o soro e fez a primeira assepsia do ferimento ali mesmo. Não houve perda de tempo. Saíram imediatamente, sirenes ligadas, não sei pra que, na roça não há trânsito para atrapalhar.

Pegamos o carro para voltarmos para dar as notícias para seu Alcides, seu Gabino montou e nos seguiu.

Impressionante o estoicismo daqueles homens. Estavam todos de volta à labuta, menos seu Alcídes, tristinho, sentado na varanda, de olho na estrada esperando que trouxéssemos boas notícias.

Tivemos que contar o socorro que dona Cecília recebera uma vez, e outra e outra. Ele nos pedia detalhes, se ela estava bem, se ela ia morrer, e rezava, e dava graças a Deus por os amigos estarem ali para ajudar, e pedia a Deus que abençoasse o médico, e rezava, e nos agradecia... Via-se o alívio, embora a preocupação, em seu rosto.

Seu Alcides não gosta da cidade, passa anos sem vir. Sabendo que o patrão daria todo suporte, que o médico que trataria dela é seu velho amigo, que ela estaria bem assistida, preferiu ficar na roça, não quis vir conosco. Ficaria ali apegado à sua imagem de São Jorge, pedindo pela esposa.

Na hora do almoço tivemos que repetir todo o acontecido desde a hora da ambulância, deixávamos seu Gabino contar os detalhes, ele se comunicava melhor com aqueles homens e contavam com sua confiança. Se seu Gabino falou, ninguém duvidava, já não tenho tanta certeza se confiariam na minha palavra ou na do fazendeiro.

Alguém propôs uma oração e todos rezaram pela saúde de dona Cecília. E comeram a se fartar. Seu Alcides não conseguia comer. Apenas tomava água. Não adiantou eu insistir para que se alimentasse. Percebi que não era uma questão de desejo, apenas não conseguiria.

Depois de comer, sem a mulher em casa, seu Alcides pôs-se a fazer as tarefas que cabiam a ela no dia a dia. Recolher a mesa, lavar a louça e eu o ajudava. Os demais se espalhavam pelo curral, pela varanda, sob as árvores, descansavam para voltar à vacinação.

O resto do dia foi de trabalho em silência, só se falava o necessário, os aboios eram mais tristes que o usual. Por mais que goste de fazenda, já me achava entediado com tanta vaca. Os trabalhos acabaram por volta das 18 horas. Recolhem-se as tralhas, as despedidas, os agradecimentos do patrão pelos vaqueiros que vieram de outras fazendas para ajudar, os votos de melhoras para dona Cecília, as despedidas sinceras. E viemos embora.

Cheguei em casa cansado, sujo, mas feliz. Foi um daqueles sábados cheio de novas experiências, muito aprendizado e um carinho a mais por aquele povo que trabalha todos os dias, que é amigo dos amigos, que é sentimental sem pieguice.

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