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terça-feira, janeiro 10, 2006

O décimo terceiro salário tem como função evitar que nos afoguemos nas taxas de janeiro.




Muito obrigado, Mago, pela homenagem. Me pegou de surpresa e me encheu de orgulho.


São João del Rei


Dona Ventana


Celifônio já começava a imaginar que aquela velha da janela não era uma velha na janela, uma estátua, talvez um retrato em tamanho natural ou uma pintura na janela e a própria janela não existia.

Ao sair de manhã para o trabalho, lá estava a velha na janela do primeiro andar do prédio do outro lado da rua. Ao meio-dia voltava para almoçar e a velha o observava abrir a porta de casa.

Feita a refeição, assistia a algum noticiário na televisão e voltava para o expediente da tarde. De soslaio via a velha acompanhá-lo com o olhar. Às seis da tarde, todos os dias, desde a esquina já sabia que os olhos da velha observavam-no se aproximar.

Não importava a hora, noite ou dia, dia útil ou feriado, se chovia ou o sol queimava, bastava olhar para o alto do outro lado da rua, lá estava a velha e seu vestido vermelho, debruçada na janela, observando o movimento dos carros, das outras pessoas e os seus.

Por alguns meses se incomodou, depois se rendeu à idéia de que a velha só olhava, nada de mais fazia para atrapalhar sua vida. Acordou disposto a ter uma convivência pacífica e amigável com a velha que não sorria, não respondia aos seus cumprimentos, apenas girava o pescoço acompanhando os movimentos da rua.

Ao sair para o batente a cumprimentou com um sorriso e um "bom dia" e recebeu apenas um olhar estóico de volta. Tudo bem, ela não queria amizade, ela não teria.

Houve uma onda de assaltos às casas do bairro, mas naquele quarteirão ninguém fora roubado. Celifônio acreditou que a vigilância da velha da janela inibira os gatunos e por isso passou a dedicar-lhe simpatia e até gratidão, mesmo não tendo certeza de ter sido ela a polícia que a polícia não era.

Numa madrugada de verão faltou energia. Sem condicionadores de ar ou ventiladores para aplacar o calor úmido, toda a vizinhança resolveu arriscar e dormir com as janelas abertas. Ao abrir a sua, Celifônio não surpreendeu-se em ver a velha na janela.

Já íntimo daquela imobilidade vigilante, Celifônio contava sua história para os amigos e se referia à velha da janela como Dona Ventana, por falta de um nome verdadeiro, e todos se divertiam achando tratar-se de mais uma brincadeira criada pelo alegre Celifônio.

Três anos e meio depois do primeiro contato, ao chegar em casa no início da noite, Celifônio não viu a velha da janela, agora fechada. Um frio percorreu-lhe a espinha, algo muito errardo acontecera. Sentou-se na calçada e, por horas, ficou observando as réstias de lz amarela que vazavam pelas venezianas da janela fechada qté que, vencido pelo cansaço e pela necessidade de acordar cedo na manhã seguinte, retirou-se para sua intimidade enclausurada.

Por anos acreditou que Dona Ventana estava morta.

O tempo passou, Celifônio conheceu Adalúcia, casaram-se, tiveram Celícia e Adafônio e a família feliz progredia morando em frente à janela fechada.

No Natal do décimo aniversário de casamento viajaram para São João del Rei. Passeando pelas ruas de pedra da cidade histórica, Celifônio observava as fachadas coloridas e centenárias doscasarões quando a reviu, debruçada sobre a grade de ferro, vestindo um vestido vermelho de papoula. Sentiu o gosto do passado sobre a língua e um frio já conhecido percorrendo a espinha.

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