Em dezembro de 2001, Saulo tinha dezoito anos; Carlos tinha 21. Saulo Morava com a mãe; Carlos morava com a mãe, o padrasto, a esposa e uma filinha de 9 meses. A mulher de Carlos estava grávida havia poucas semanas, mas só saberia em janeiro de 2002.
No dia 22 de novembro, um mês antes do fato que narro agora, a casa da mãe de Saulo havia sido furtada enquanto ela e Saulo se encontravam passando o final de semana no sítio de uns amigos. Saulo, que desde os dez anos vivia se metendo em confusão, envolvido em pequenos furtos, começando a usar drogas e, mais tarde, ele próprio traficando, conhecia todos os malandros do bairro. Pergunta daqui, fuça ali, pressiona acolá, fica sabendo que um dos autores da invasão da casa de sua mãe era Carlos.
Armado de um revólver calibre.38 e acompanhado de um amigo, Saulo vai à casa de Carlos. Entra sem bater e encontra dona Maria José e seu marido, João. Aponta-lhes a arma e diz que quer ver Carlos, que no momento encontrava-se em um dos quartos, ninando o bebê. Ao ouvir a barulheira, Carlos sai para a sala. Há quem diga que eles não se conheciam de antes, inclusive o próprio Saulo; há quem diga que eles já foram vistos conversando em uma pizzaria. Saulo guarda a arma no cinto e pede para Calos vir com ele até a rua, precisavam conversar. O amigo de Saulo, montado em uma bicicleta, fica à janela apressando Saulo. Ao saírem, dona Maria José, nervosa e amparada por João, ainda ouve o filho dizer que não sabia de roubo nenhum, que não tinha nada a ver com o caso, que não tinha as coisas da mãe de Saulo. Caminham pela rua enquanto dona Maria josé é contida por João que não a deixa seguir os rapazes. Durante a discussão entre mãe e padastro, ouvem-se três disparos.
Apavorada, dona Maria josé se desvencilha dos braços do marido e corre para a rua. A quarenta metros de sua casa vê o filho caído na rua, Saulo correndo ladeira acima e seu comparsa no sentido oposto, de bicicleta. Gritando por socorro, corre para o filho que já está morto. Um único tiro na nuca. Aos poucos os vizinhos se aproximam e ela, que nunca havia visto Saulo antes, ouve um dos vizinhos dizer que viu o crime e que fora Saulo, dizendo o nome no assassino.
Saulo já havia sido preso por porte ilegal de armas e respondia a processo por tráfico de drogas, mas continuava à solta, como é praxe num país em que os bandidos têm mais benesses do que penalidades. deposi de cometer mais esse crime, fugira, ninguém sabia seu paradeiro, nem mesmo a mãe.
Em junho de 2002 Saulo foi preso em Santa Cruz Cabrália, depois de roubar uma mercearia e ter tentado dar tr~es tiros contra o dono do pequeno comércio. Wanderlei, o dono da bodega, deve ser um homem muito religioso e ter rezado um bocado naquele dia. Das três vezes que Saulo puxou o gatilho, apontando para a cabeça do comerciante, a arma falhara. Desesperado por encontrar-se desarmado, o jeito foi fugir. Não iria muito longe, porém. Conhecido na área, foi facilmente localizado e preso pela polícia e em seu poder, a arma, do mesmo calibre da que matara Carlos às vésperas do Natal do ano anterior.
Com Saulo preso, dona Maria José e o marido, João, foram chamados para um reconhecimento formal, o que foi prontamente feito.
Pelo roubo e pela tentativa de assassinato contra Wanderlei, Saulo foi condenado a quatro anos e cinco meses de prisão e transferido para a penitenciária de Teixeira de Freitas, paralelamente a isso, corria o processo pelo assassinato de Claúdio.
No presídio, Saulo se envolveu em um motim e foi transferido para o presídio Lemos de Brito, de segurança máxima (pelo meno isso diz a Justiça), em Salvador. A mais de 700 quilômetros da família, o jovem marginal passaraa receber visita somente uma vez ao ano, quando sobrava algum dinheiro nas parcas economias da mãe.
O juiz de Eunápolis deferira a favor do Ministério Público o pedido de julgamento, mas, como as testemunhas do assassinato se recusavam a se apresentar, com medo de Saulo, seu comparsa e suas famílias, seu advogado recorreu, o que terminou por atrasar o julgamento. Em Salvador os desembargadores votaram a favor do julgamento, acatando a decisão do juiz da comarca e o processo voltou. O tempo passava, Saulo cumpria pena pelo outro crime, dona Maria José separara-se de João, que hoje mora no rio de Janeiro, nascia a segunda filha de Carlos, e o caso não tinha solução.
Quase seis anos depois do crime, com Saulo já no último mês de sua sentença anterior, estava sendo recambiado para Eunápolis e, se absolvido, teria somente mais um mês de prisão e estaria livre. Seu novo advogado, um rapaz novo, mas muto bem articulado e dono de uma retórica invejável, argumentava que não havia provas nem testemunhas do assassinato, uma vez que as testemunhas se diluíram no tempo e no espaço. O próprio depoimento de dona Maria josé, a única a ser ouvida na corte, além de Saulo, dizia que ela não vira o crime, apenas ouvira os disparos e Saulo correndo.
Não sei os demais jurados, mas eu me senti encurralado. Me vinha à cabeça todo o tempo o que uma vez disse a um juiz e ele concordou: "existe uma enorme diferença entre verdade e Justiça". Para mim estava claro que Saulo matara Carlos, tanto pelos depoimentos dos autos quanto pelas palavras da mãe do rapaz morto; estava claro que não fora Carlos quem furtara a casa da mãe de Saulo; estava claro que os álibis montados pela defesa de Saulo eram forjados, tanto que as donas do sítio que afirmaram que Saulo estivera com eles dos dias 20 a 30 de dezembro (o crime ocorrera no dia 23), alertados pelo promotor que perjúrio era crime e que elas poderiam sair do tribunal presas, não compareceram e o próprio advogado que as arrolara, abriu mão de seus depoimentos. A dúvida que ficava era justamente a da autoria, uma vez que não havia prova nem testemunha. Ou seja, eu sabia que o rapaz era culpado, mas não havia prova.
Já eram dez e meia da noite quando acabaram os dicursos, réplica e tréplica do promotor e do advogado, quando o juiz perguntou a nós, jurados, se estávamos aptos a julgar o caso. Eu não estava. pensei no desconforto de estarmos há onze horas naquelas cadeiras antes almofadadas e que agora nos pareciam madeira cruas; pensei na antipatia que causaria a meus companheiros de conselho de Sentença, mas eu ainda não me sentia preparado. Era a vida de um garoto de 24 anos que estava em jogo. Criei coragem e pedi ao juiz para dar uma lida no processo, eu ainda tinha dúvidas a tirar. Ouvi dos meus pars um suspro profundo de enfado. Vi no semblante do advogado uma centelha de esperança e na cara do promotor a confiança que ele depositava em mim, meu amigo e sabedor de que tenho um senso de justiça mais profundo que um leigo como eu possa ter, sem querer me vangloriar, que fique claro. Sou professor do seufilho e, por certo, o garoto deve falar para os pais dos meus discursos em sala de aula sobre justiça, honradez, honestidade e cidadania sem pieguice que faço sempre que a situação pede.
O juiz mandou o bedel me entregar os autos e me permitiu meia hora para Lê-los. Suspendeu a sessão, esvaziou o plenário, recomendou a incomunicabilidade dos jurados e, imagino o suspense que cercou os presentes. Tentando não me incomodar com o ódio que alguns deviam estar sentindo de mim, reli calamamente todos os depoismentos: de Maria José, do policial, de Saulo na polícia e em juízo, da mãe do réu, do padrasto da vítima, dos pseudo-álibis, li o documento do reconhecimento do acusado, o despacho da desembargadora que mandara o processo voltar a essa comarca, o laudo do legista...
Terminada a meia hora a jmim concedida, o juiz voltou a perguntar se estávamos preparados para o julgamento, todos estávamos.
Na sala secreta, repondendo aos quesitos objetivos, Saulo foi condenado por cinco votos contra dois, com a agravante de motivo torpe e a atenuante de ser menor de 21 anos na época do crime.
De volta ao plenário, sessão pública novamente, o juiz lê a sentença: 14 anos e cinco meses.
Eu confesso que ainda estava incomodado. O alívio, por incrível que pareça, veio do próprio réu, que pediu a palavra ao juiz, que a concedeu. Saulo disse que estava conformado com a sentença, sereno, sem qualquer ódio ou rancor aparente, apenas pedia que o juiz o enviasse para cumprir pena num presídio mais próximo para que pudesse receber a visita da mãe.
Por ele não ter protestado, não tentar negar a autoria, não dizer-se injustiçado, minhaconsciência deu um suspiro de alívio. Aquilo soara para mim uma confissão de culpa.
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