Depois do expediente, como de praxe, os amigos reuniam-se no barzinho da esquina. A animação do final de uma semana a mais de ganha pão e cansaço era comemorado efusivamente aos primeiros goles da cerveja gelada e, aos poucos, os grupinhos iam se formando. Por afinidade ou por interesses as mesmas turminhas de todas as semanas separavam-se aos pouquinhos e a conversa, antes animada, deixava de ser festa e virava bate-papo.
Alguns mais estressados não deixavam de falar do trabalho, da nova conta que teriam que conquistar na segunda-feira; as casadas não evitavam discernir sobre os últimos acontecimentos do lar, o filho que crescia bonito e inteligente, a empregada que não sabia cozinhar, a desconfiança que o marido tinha uma amante; as solteiras não cobiçadas pelos colegas agrupavam-se para combinar a balada desta noite, quem ficaria com quem, Astrobaldo iria?, Celineide estava ficando com Valdiomírio ou já estava com Garvanil?; as mais atiradinhas e desejadas viam-se cercadas por aqueles que as queriam e lhes faziam a corte, eles na esperança da conquista, elas na certeza que os despachariam na primeira oportunidade; os três mosqueteiros, Berlindo, Cariosso e Brólio, recepcionavam o novato Bugio, assim apelidado por ter vindo do Mato Grosso, Ijuína, pela primeira vez na cidade grande.
Para enturmar o colega, fofocavam sobre as vidas dos demais. Gracejos, piadas, indiscrições eram a pauta. Berlindo, o mais falador, começou a falar sobre Birdiana, a gostosa séria que para ninguém dava conversa.
- ... aí descobri que o namorado dela é médica, continuava seu relato.
- Era médico, tentava corrigir o ingênuo Bugio.
- Não, médica mesmo.
- Saquei. E aí?, o interessado Cariosso não segurava a curiosidade.
- Daí eu cheguei...
- Peraí. Por que médica e não médico? Você não estava falando do namorado dela? – Não se conformava Bugio com a aparente discordância de gêneros.
- Isso aí. O namorado dela é médica.
- Como? Ta maluco? O namorado, masculino; médica, feminino. Essa concordância ta errada, rapá.
Os outros dois que haviam entendido o sentido da colocação de Berlindo, gargalhavam da inocência do matogrossense.
- Que é? O que foi que não peguei?
Lógico que Bugio sabia o que eram lésbicas, da tv, dos filmes, das novelas, mas jamais havia tido contato com uma, imagina ser algo das ficções. Não consegui acompanhar o raciocínio de Berlindo.
È mais ou menos como o pessoal do Sudeste ou Sul ouvir falar de pato no tucupi, achar uma coisa normal, existe, sim, deve ser gostoso e coisa e tal, mas não saber reconhecer o prato quando deparar-se com ele. As informações, assim como na escola, são incompletas se não se conseguir tatear, não tiver contato direto com a coisa ou situação.
O professor de história fala que os navegantes portugueses corriam sérios riscos de contraírem beribéri e cobrava isso na prova, mas quem sabia o que, de fato, é beribéri? Não interessava, ninguém tinha beribéri que mais parece nome de fruta amazônica. Lésbicas, para Bugio, era beribéri. Algo de livros e não palpável.
- Pára e pensa, Bugio. O namoradO, sacou?, é médicA, sacou?
- Pra mim continua sendo um assassinato da gramática.
- Que moleque burro! Ela é lésbica, mane, e está namorando uma médica!
- Uai! Lésbica?
- Nunca viu uma lésbica não, capiau?
- Eu não. Pensei que elas fossem parecidas com machos, cheias de pêlos, falando grosso, cabelos com corte militar... Vocês tão de sacanagem, é trote no novato... Saquei.
- Que trote o quê! Você vai ter muito o que aprender sobre a cidade, ô, da roça.
- É verdade, então? Ela é lésbica mesmo? – com os olhos arregalados e ainda incrédulos, Bugio não conseguia esconder seu assombro.
- Ih! Tem mais um monte lá na firma?
- Pô, mas ela é tão bonita, delicada, cheirosinha... Eu tava até pensando em dar uma encostada, convidar para um cinema, sabe como é?
- Ué, convida, ela é gente boa. Só não chama pro motel.
- Eu hein? Vai que ela topa e quer dar uma de homem pra cima de mim?
Os estereótipos estavam arraigados no imaginário do ingênuo Bugio que não teve como escapar das gozações implacáveis dos colegas.
Trabalhando diretamente sob a coordenação de Birdiana, Bugio evitava olhá-la de frente a partir da segunda-feira, esquivava-se inventando algum afazer urgente quando se via só com ela na sala, olhava-a de soslaio por trás da pasta que abria para disfarçar sua curiosidade, na esperança de vê-la coçar o saco em público.
Birdiana percebendo as fugas nada dissimuladas do colega, querendo entender o que se passava, chamou-o á sua sala e mandou que fechasse a porta quando entrasse. Ofereceu-lhe uma cadeira em frente à sua escrivaninha e foi direto ao assunto.
- O que está havendo, Bugio, por que você está estranho comigo?
- Nada, não, impressão sua, tentava disfarçar o rapaz, incomodado na cadeira, como se fosse um catre de faquir.
- Vai, fala comigo. O que aconteceu? Fiz alguma coisa que o ofendesse?
- Não, senhora, quê isso?, apressou-se.
- Você está insatisfeito aqui, quer mudar de sessão?
- Se a senhora não se importa, gostaria, sim.
No dia seguinte, foi enviado para o setor de correspondência. Ao apresentar-se, foi recepcionado pelo chefe, Flaurínio, que o recebeu com incontida alegria.
- Ai, que lindo! Até que enfim um homem bonito nesse departamento. Sente, querido, você vai ser meu assistente direto.
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