Pesquisar neste blog e nos da lista

quinta-feira, outubro 27, 2005

Se me disserem que o mundo vai acabar amanhã, nem vou me preocupar. Me mudo pra Quixeramobim.



Antiguidade é posto

É comum em escolas tradicionais e empresas menos sisudas os mais antigos "batizarem" os novatos com trotes. Desde os primódios das escolas militares no Brasil isso ocorre. Na maioria das vezes são apenas curtições, pelo menos nos últimos tempos. Raramente se chegam a extremos como matar o "bicho" afogado na piscina a exemplo do que fizeram com estudante da USP, caso até hoje não resolvido.

Eu também já preguei minhas peças e fui vítima por vezes. O último de que me lembro foi na escola onde trabalho.

Os alunos do ensino médio haviam programado uma excursão para Guarapari, no Espírito Santo, mas só poderiam ir acompanhados por, pelo menos, dois professores, caso contrário os pais barrariam o passeio.

Meus colegas, todos já bem tarimbados, encheram-se de desculpas e foram tirando o corpo fora e o bobão aqui topou ir. Primeiro porque os alunos pediram, reflexo da minha boa relação com eles; segundo, porque eu também queria conhecer aquele balneário, maldosamente chamado por alguns de "banheira de mineiro" devido à grande afluência do povo daquele estado quando quer ver o mar.

Além de mim foram uma das diretoras e um professor de biologia. Até aí tudo bem, não fosse o fato de ambos estarem acompanhados por uma filha e dela ter familiares em Vitória.

Depois de uma noite inteira dentro de um ônibus com quarenta e cinco inquietos adolescentes cantando, gritando, passando pasta de dentes nos cabelos e rostos dos incautos que não resistiam ao sono, guerra de almofadas, banhos de água mineral e outras brincadeirinhas agradáveis, chegamos à pousada.

Por volta das sete horas desembarcamos na hospedagem no centro da cidade, distante do mar, portanto, sob uma chuva torrencial. Isso era sinônimo de que não haveria praia, ou seja, estaríamos confinados em nossos apartamentos.

Ainda na portaria, enquanto registrávamos a tropa, bastou o recepcionista dizer que ocuparíamos apartamentos nos três andares para um apressadinho pegar sua mochila e abrir carreira escada acima. Menos de cinco minutos para tocar o interfone. Era um hóspede reclamando da invasão do seu quarto.

O garoto afoito abriu a primeira porta que encontrou pela frente e jogou-se na cama marcando seu território: "esse quarto é meu!". Na cama encontrava-se um casal em lua-de-mel. Às oito o casal estava de malas prontas fechando a conta e com mais uma lição aprendida: nunca deixe de trancar sua porta em um hotel.

A diretora, uma senhora com seus cinqüenta anos, escolhera um apartamento para si, sua filha e uma sobrinha. Nada mais justo.

O professor de biologia exigiu um quarto para ele e a filha. Justíssimo.

O pato, eu, tive que dividir o quarto com três adolescentes: Ronaldo, Eros e Albert, coincidentemente o mesmo que invadira o quarto do casal.

Desfizemos as malas, higiene pessoal e tal e coisa e eu doido para tirar pelo menos uma sonequinha restauradora. Uma vez que o clima não nos aconselhava a sair, imaginei que fossem todos ficar em seus quartos papeando, assistindo à televisão, jogando alguma coisa ou dormindo.

Fui à portaria para saber em que quarto ficaram meus colegas a fim de combinarmos o que fazer caso a chuva não parasse. Eram apenas nove horas. O recepcionista me informou que eles haviam alugado um carro e ido para Vitória. O professor com a filha para fazerem compras e a diretora com a filha para visitarem os parentes, como fiquei sabendo depois. Só à noite, para ser mais preciso.

O caos estava decretado. Eu ficara sozinho para controlar a turba de hormônios ensandecida espalhada por três andares de um hotel numa cidade que não conhecia.

Furioso, sentei numa poltrona do lobby, peguei um jornal e tentei ler enquanto maquinava alguma coisa. Enquanto isso o carnaval tomava corpo nos três pisos acima da minha cabeça. Ouvia as correrias, portas batendo, gritos e gargalhadas, mas tentava ficar calmo, coisa que necessita de um grande exercício de paciência, confesso.

Estava na hora de fazer uma revista à tropa. O cenário que encontrei foi assustador.

No primeiro andar vejo duas garotas mineiras batendo boca com dois alunos meus. Furiosas por terem sido acordadas com a bagunça, soltavam todos os impropérios contra eles e, por extensão, contra todos os baianos. Certíssimas no primeiro caso, mas até entendo suas razões quanto ao segundo. Situação constrangedora ter que entrar numa briga sabendo que seu time não tem nenhuma razão.

Milhões de pedidos de desculpas e uma meia dúzia de empurrões e esporros nos moleques depois, caso encerrado.

No segundo andar sete moleques só de cuecas, sentados na posição de lótus, formando uma rodinha no meio do corredor, emitiam "uuuuuuummmmm..." e "ããããããã..." fazendo de conta que estavam meditando. Qual o propósito daquilo? Impadir que as garotas saíssem de seus apartamentos sem vê-los quase desnudos.

Sem paciência para sermões ou lições de moral, apelei para safanões. Dispersei os descarados e continuei escada acima.

"O que estou fazendo aqui?", era tudo o que conseguia pensar. Haviam esvaziado um extintor de incêndio, daqueles que contém pó, por baixo da portade um apartamento. Pelo estado em que se encontrava o corredor fiquei imaginando como estaria o interior do quarto. A vontade foi de sentar na escada e chorar. Maldizia meus colegas fujões e suas famílias até a terceira geração.

Bati à porta do apartamento atacado e o que vi nem me causou a estranheza que causaria em outra ocasião.

Havia pó branco por toda parte, inclusive nos cabelos das garotas. Cobertas, travesseiros, portas do guarda-roupas, janela, condicionador de ar, tudo unicolor, branco, alvo como a ante-sala do paraíso naquele inferno.

O último resquício de calma esvaiu-se. Mais uma sessão de impropérios e esporros, mandei que limpassem tudo, nem que fosse com suas toalhas e avisassem a todos que os estava esperando no refeitório.

Meia-hora depois, refeitório cheio de adolescentes, eu e o gerente ditamos as regras de conduta geral dali por diante pelos três próximos dias e, caso uma única dessas regras fosse quebrada, imadiatamente faríamos nossas malas e voltaríamos direto para casa, sem direito a parada nem para alguém ir ao banheiro.

Com aquele ar tocante de criança que levou um carão, todos aceitaram e concordaram se comportar.

Ótimo! Agora poderia ir para meu quarto e descansar um pouco.

Ao abrir a porta do meu apartamento vi o Albert sentado nu na janela mostrando a bunda branca para quem passasse na rua, o Ronaldo fazendo tiro ao alvo com bolas de papel higiênico que ele molhava nos dois dedos de água que cobriam o chão num alvo enorme de Hipoglós pintado na porta do banheiro, onde o Eros tomava banho na banheira transbordante.

Nenhum comentário: