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terça-feira, novembro 08, 2005

"... fazer da bosta dinheiro pra ver o povo enricar."
(Mestre Ambrósio)


Assim Nascem As Aleivosias

Zé e Miguel, cidade muito pequena do interior, na época das cadeiras nas calçadas, das portas constatemente abertas, época em que se podia dormir numa rede na varanda em noites quentes tendo como única preocupação as muriçocas.

Dois adolescentes saudáveis e brincalhões, educados sob as normas rígidas de então, época em que se cedia lugar para as mulheres e os mais velhos, em que se dava bom dia para desconhecidos na rua, que os homens usavam chapéus e os retiravam em reverência e respeito, época em que se pedia "por favor" e se falava "com licença" e "muito obrigado".

Cada qual em sua bicicleta iam à escola e às matinês, porque naquela época os cinemas do interior eram cinemas e igrejas eram igrejas. Época em que o leite era entregue de casa em casa trazido em garrafões de zinco no lombo do cavalo, pouco antes de chegar a bicicleta da padaria com os pães quentinhos. Época em que professores ensinavam e eram autoridades enquanto alunos aprendiam e eram respeitosos. As outras autoridades da cidade eram o prefeito, o padre, o médico e o delegado.

Zé e Miguel, quando se interessavam por uma moça - não eram garotas ou "minas" - iam falar com os pais dela para convidarem-na para um sorvete ou um passeio pela praça no domingo à tarde, isso porque as moças eram obedientes aos pais e os rapazes temiam os sogros e cunhados potenciais. Época em que não era crime dar umas palmadas em filho arteiro e ainda não existia o trauma infantil.

Miguel e Zé tinham uma paixão comum, a música, mas instrumentos eram caros e não havia onde comprá-los na cidade. Necessidade havia de encomendá-los da capital. Miguel adorava violão e piano, enquanto Zé queria um violão ou uma clarineta.

Iam à missa domingueira não para receberem as graças do pároco ou expiar seus poucos pecados, mas para verem o padre Brandon Wiright, estadunidense grandão, tocar o órgão. Eles tinham que tocar aquele órgão, mas a enorme peça de madeira negra lhes parecia mais sagrada que a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, padroeira do lugar, indignos se achavam de aproximarem-se do instrumento.

Certa madrugada, todas as casas apagadas, nenhum barulho nas ruas senão dos cachorros e pássaros noturnos, foram até a igreja. Escalaram a imagem gigante de um santo colocado do lado de fora, ao lado da enorme porta principal. Passaram por uma pequena abertura que tinha por função ajudar na ventilação da nave do templo, desceram por outra imagem do lado de dentro.

O tão sonhado órgão era deles, pelo menos por aquela noite.

Tocaram e tocaram, inventaram melodias, brincaram com as teclas de maneira que sua imaginação permitia.

O tempo passava e se sentiam Carlos Gomes, Villa-Lobos, Chopin, até que num estala Miguel caiu de volta ao chão.

Alertou Zé que estava tarde, dali a pouco a cidade acordaria. Na próxima noite voltariam. Escalaram um santo, desceram por outro e foram para suas casas.

Ao acordarem naquela manhã, um pouco mais tarde que o habitual, a cidade em polvorosa discutia a assombração que tocara órgão a noite inteira e dava risadas dentro da igreja. O padre Brandon Wright apenas sorria para os meninos.

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