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quarta-feira, novembro 30, 2005

Águas passadas não movem barquinhos.


A Felicidade Pode Esperar

Selvana sentou seus setenta e cinco anos de idade e cinqüenta de espera naquele banco de praça à sombra da mangueira. Ainda faltavam duas horas para a hora marcada do encontro, mas a ansiedade a impelira.

Não via Silas desde o dia em que ela recebera as rosas roubadas do jardim da igreja que Adamastor lhe oferecera. Seu Sidônio, o pai, alagoano plantador de fumo em Arapiraca, não admitia sua filha dar trela para o almofadinha da capital. Mesmo Selvana tendo já vinte e cinco anos e sendo a única da prole ainda solteira, a despeito de seus dons de dona de casa, sua beleza morena acima da média das moçoilas do lugar, os ciúmes do pai não permitiam que lhe fizessem a corte. Depois de ter expulsado dois pretendentes com uma peixeira em uma das mãos e o reino na outra, os rapazes evitavam olhar a prendada Selvana.

Irascível, seu Sidônio enviou a filha para a casa da madrinha em Cabrobó. Dona Eudócia, bem mais liberal, incentivava o embelezamento de Selvana com carmim e pó nas faces, vestidos mais curtos, dança na quermesse, quadrilha no arraial, onde ela conheceu Baltazas, com quem casou-se e viveu feliz por trinta e sete anos.

Do casamento nasceram Berenice, Brasilino e Bosco. Os filhos casaram-se, o marido faleceu e ela mudou-se para um sítio fora da cidade com as comodidades modernas, a companhia de dona Jucimara, empregada tão antiga que tornara-se irmã, e as visitas de Bosco, que lhe comprara um computador e lhe ensinara a comunicar-se com o mundo através da grande teia.

Se tornara uma velhinha moderna com MSN e Orkut, talvez a decana dos usuários. Nessas aventuras internéticas descobriu a comunidade da família Verçosa e nela o Silas Verçosa Neto, a quem adicionara como amigo e aos poucos foi-lhe conquistando a confiança e trocando confidências. Assim descobrira que o jovem era neto do Silas que esperava agora.

Trêmula de ansiedadae, não sentia o calor da tarde ensolarada, não ouvia os gritos dos vendedores ambulantes, apenas os olhos estavam vivos e ao ritmo do coração, procurando em cada canto ao seu redor um velhinho qualquer que ela sabia difícil de reconhecer. Sabia que ainda faltava muito tempo, aquelas duas horas eram mais demoradas que os últimos cinqüenta anos. Tinha medo de não conseguir esperar mais. O peito acelerado recebia doses extras de oxigênio quando inspirava fundo, na tentativa de acalmá-lo.

Um leve toque no ombro a trouxe para perto quando escarafunchava a distância com o olhar cansado.

- Selvana?

O velhinho de camisa de algodão branca impecável por dentro da calça de tergal cáqui, cinto marrom, elegantes óculos de aros grossos e lentes bifocais, sapatos lustrados e brilhosos, inspirava respeito e serenidade.

- Silas?, mal conseguiu balbuciar.

Levantando-se automaticamente abraçou o irmão que lhe restara, abraço demorado e carinhoso regado de lágrimas de quatro olhos. A sublimação do carinho.

Sem palavras, deram-se o braço e saíram caminhando na certeza de que aquele seria o Natal que todo aquele tempo não permitira acontecer.

terça-feira, novembro 29, 2005

Quem vive de memórias sofre duas vezes.


Passado É Coisa do Passado

- Amor, olha essa foto.
- Onde foi isso?
- Não lembra?
- Não.
- Amor! Foi naquela excursão à serra gaúcha!
- Ah!
- ...
- Quando foi isso?
- Não acredito! Tá tirando com a minha cara?
- Que isso meu bem? Eu não lembro, só isso.
- Nosso primeiro ano de casamento, Astrogildo. Como pode esquecer isso?
- Se estamos no sétimo, é lógico que tivemos o primeiro, mas também tivemos mais seis. E foram todos muito bons, não foram?
- Vai me dizer que não se lembra disso também...
- Ora, amor...
- Lembra onde comemoramos o segundo?
- Fortaleza?
- Fortaleza? Esse foi o quarto!
- Chapada Diamantina.
- Nunca fomos à Chapada Diamantina! Tá louco?
- Ih! Então, não lembro.
- Manaus, Astrogildo! Manaus!
- Ah!, foi...
- Vai dizer que não lembra...
- Lembro de um calor de sauna e muita água.
- E fomos com quem?
- Com o Clodoaldo?
- Clodoaldo? Que mané Clodoaldo?
- Ah!, é. Não te apresentei o Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Quem é Clodoaldo?
- Sei lá! Você que falou nesse tal Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Você tá bêbado, Astrogildo? Quem é Clodoaldo?
- Sabedeus. Não conheço nenhum Clodoaldo, Suméria.
- E como é que perguntou se fomos a Manaus com o Clodoaldo?
- Chutei, ué.
- Eu tô casasa há sete anos com um maluco e não sabia.
- Com quem fomos a Manaus em nosso terceiro aniversário?
- Segundo!
- Segundo? Quem é Segundo?
- Segundo aniversário, desgraçado!
- O que tem o segundo aniversário?
- Nós fomos a Manaus com o Cleócio e a Vilda em nosso segundo aniversário de casamento, seu beócio.
- Ah, foi!.
- "Ah, foi!, "ah, foi"... Você não lembra, confessa.
- Não lembro mesmo.
- Como é que você não lembra coisas tão importantes que nos aconteceram, seu maldito?
- Porque eu penso nos muitos anos que ainda vamos viver felizes. Porque vejo nosso amor em perspectiva, não em retrospectiva.

segunda-feira, novembro 28, 2005

O que difere uns de outros: Morrer é fácil, difícil é viver.



Cansaço

Na sala um sofá e uma poltrona de um mesmo conjunto, mas diferentes no uso. Enquanto o sofá aparentava nunca ter sido usado, a poltrona se mostrava gasta, o molde perfeito de um corpo em suas almofadas puídas. Na estante, de Joyce a Paulo Coelho, centenas de livros manipulados, tirinhas de papel, aos milhares, saiam de cada volume com pequenas anotações.

Os móveis antigos contavam a história de suas vidas, a do morador e a de seu pai, de quem os herdara. A segunda estante, a que ele chamava de estante de som, sustentava um antigo aparelho três em um do qual jamais se livraria. Nele eram ouvidos os muitos discos de vinil de Dolores Duran, Pixinguinha, Yes e Edu Lobo, entre os mais de quinhentos títulos. Aquele aparelho tocava as inúmeras fitas cassete de sua infância, as mesmas fitas que seu pai ouvira tantas vezes no Corcel 74.

No quarto se via a cama de solteiro com um velho colchão de molas e roupas de cama gastas, sempre desarrumadas. Sobre ela uma toalha de banho molhada. Uma estante de madeira de lei abrigava exemplares e exemplares de revistas velhas e uma tevê sintonizada num canal popular.

Ainda escorria a água do último banho pelas paredes, cortina e chão do banheiro de portas abertas que recendia o cheiro enjoativo do sabonete barato.

Sobre a mesa da cozinha uma folha de papel ofício com umas poucas palavras escritas em tinta de esferográfica: "Não há motivo, não há culpado, assim como nunca houve razão antes disso".

Nu, ajoelhado diante do forno onde enfiara sua cabeça depois de abrir o gás, dormia eternamente o corpo amarelado do dono de tudo aquilo.

domingo, novembro 27, 2005

Domingo no Parque

Na tarde preguiçosa e domingueira a menininha brinca, sozinha no balanço.

A cidade se espreguiça em volta da praça onde o pai, sozinho em um banco, lê seu jornal sem interesse. Ela, no carrossel, gira com seu vestido florido.

Até os alienígenas pardais se demoram a catar suas migalhas, enquanto a menina e seus cabelos negros em maria-chiquinha escorrega a bunda e cai de pé na areia pisada e repisada, antes branca, hoje marrom de uso.

Ao longe se ouve um samba. Algum botequim ainda vive na tarde morna em que a menininha tira as sandálias para sentir-se mais livre para escalar o brinquedo de canos. O pai, ausente, lê o caderno de esportes.

Sua mãe, em casa, prepara o suco e o bolo, vontades expressas da menininha para a merenda da tarde. A guria, sem coleguinhas, maquinava um jeito de divertir-se sozinha na gangorra.

Companhia ausente, o pai fazia caretas ao ler as novas da política e não via a menininha de maria-chiquinha, descalça, em seu vestido florido correr atrás da borboleta e não conseguir chegar ao outro lado da rua, impedida pelo carro cinza e veloz.

A menininha não viu a segunda-feira.

sexta-feira, novembro 25, 2005

"Nacionalidade" refere-se ao país em que se nasceu.
"Naturalidade" refere-se ao estado em que se nasceu.
Que substantivo refere-se à cidade em que se nasceu ou mora?




Tem texto meu no blog da Chris.


O texto abaixo participa do ponst comunitário proposto pela Micha.




Traição

A traição, hoje até estimulada por alguns meios, tabu há bem pouco tempo, punível com chicotadas ou apedrejamento em alguns lugares, já passou ou passa pela cabeça da grande maioria de cada um de nós.

Tive minha fase galinha que durou um ano e não me orgulho nada disso.

A vítima foi a Jandira. Não riam, o nome dela é esse mesmo. Uma pessoa maravilhosa, linda, sensível. Fazia economia e foi no campus que nos conhecemos. Ela com sua turma, eu com a minha (época desgraçada em que acreditamos que só somos alguém se tivermos uma turma) nos encontramos no forró que tinha no Vadião da universidade todas as sextas-feiras.

Rolou um clima. Praticamamente não dançamos. Foi aquele papo de horas em que um tenta impressionar o outro, ou seja, quando ambos estão afim, mas tão afim, que não quer que se resuma a uma noite.

A partir dali virou namoro e estava tudo muito bem. Mas havia a Cydia, outra pessoa fantástica. Nunca havia rolado nada entre nós, embora eu tentasse e tentasse. Mas o bicho mulher fêmea do sexo feminino tem uma coisa esquisita. Das duas uma: ou cultiva um espiríto de competição totalmente irracional entre outras da mesma espécie ou simplesmente não aceitam se verem preteridas. O fato é que nos cortam, dão as costas, esnobam quanto mais nos esforçamos para conquistá-las. No dia que desistimos, se ficarmos sozinhos, tudo bem, mas se aparecermos com outra, logo a que antes era objeto de nossas atenções e investidas se enciuma e começa a nos dar bola.

A Cydia não fugiu à regra. Dois anos de tentativas frustradas, mas bastou saber que eu estava namorando a Jandira, passou a me visitar em casa, chamar para sair, convidar para uma cervejinha num barzinho novo muito legal e por aí vai. Não resisti e caí matando. Não ia perder a oportunidade que procurara por tanto tempo, ainda mais assim, oferecida em papel de presente.

No dia seguinte a Jandira já sabia. Claro, tem sempre alguém pra vigiar a vida alheia, quase sempre aquele ou aquela frustrado(a) por não ter ninguém.

Eu gostava da Jandira, mas ela já estava apaixonada. Rompeu, xingou, me bateu. E os mesmos línguas de trapo faziam questão de vir contar como ela ficara mal. Não tentei a reconciliação, sabia que fizera uma merda muito grande. Troquei a economista pela bióloga e, pior, elas não se gostavam desde muito antes. O romance com a Cydia perdeu o gosto, amargou. Daí me joguei na esbórnia. Nada de namoro, nada de paixão. Cada noite ou dia uma e tava bom demais.

Não, não estava nada bom. Aquilo não era pra mim. Dei por acabada minha vida de galinha.

Tempos depois me apaixonei pela Ana Rita. Gatíssima cobiçada que me fez me sentir um Tom Cruise quando me escolheu naquela festa onde havia uma renca de marmanjos cercando-a.

Dois anos de namoro. Tudo muito bem, tudo muito bom, achava eu. Mas a vida é um bumerangue. Turistóloga, Ana Rita trabalhava num grande hotel em Porto Seguro, caiu nas graças de um colega e me traiu com ele. Recebi o bumerangue que atirara bem no meio da testa. Quem com chifre fere, corneado sairá ferido.

De volta às origens, cada vez mais me convenço que ninguém é obrigado a ficar com ninguém e se está, respeito é o mínimo que se deve dar e receber. A traição não é saída, muito pelo contrário, é a boca enorme de um fundo buraco.

quinta-feira, novembro 24, 2005

O que é um claviculário?



Um Funil Estreito

Com a reforma educacional de 1972, promovida pelo então ministro Jarbas Passarinho, o sistema de vestibular como processo de seleção de estudantes para o terceiro grau foi definitivamente instaurado no Brasil. As justificativas eram simples e plenamente aceitas na época. O número de universidades públicas era pequeno; os cursos oferecidos nessas poucas universidades também eram poucos; o vestibular serviria para premiar por mérito, só permitindo a entrada na universidade pública dos melhores alunos. Isso teoricamente, uma vez que era comum o uso de "pistolões" para se conseguir uma vaga. Só mais tarde essa prática tornou-se crime federal.

Nesses 33 anos aumentou a quantidade de universidades federais e estaduais, surgiram até algumas universidades municipais. Com o aumento dessas escolas veio a maior diversificação de cursos de graduação, pós-graduação e especializações. Obviamente, aumentou consideravelmente o número de vagas a serem preenchidas.

Por um bom tempo entrar na universidade era coisa para a elite econômica, uma vez que, logo após a instauração do vestibular, surgiram os cursinhos preparatórios, caros para a maioria dos estudantes. Fortunas, até mesmo impérios educacionais, surgiram a partir desses cursinhos. Paralelamente houve um empobrecimento da qualidade de ensino nos primeiro e segundo graus nas escolas públicas, salvo raríssimas excessões. Os melhores professores iam para as escolas particulares, onde recebiam salários muitas vezes maiores que nas estaduais, federais e municipais, e para os cursinhos. O acesso ao ensino fundamental foi crescendo paulatina e vagarosamente, a começar pelos grandes centros, o que tornava a concorrência cada vez mais acirrada.

Alguns cursos, por conta do status social tinham procura assustadoramente grande, como medicina, odontologia e engenharia, essa por conta das grandes obras que o governo dos generais promovia durante o "milagre brasileiro", e economia, incentivado pelo crescimento recorde que o país promoveu nesse período, tendo Delfim Neto sendo definido como o "super ministro" pela imprensa.

Com o aumento da população e, lógico, maior número de alunos concludentes do ensino médio, o boom dos cursinhos e escolas particulares país afora e o não aumento proporcional de vagas oferecidas nas universidades públicas, permitiram que o ambiente ficasse propício para a explosão em grande escala das universidades particulares. Daí surgiram verdadeiras fábricas de diplomas.

Evidentemente existem faculdades privadas de ótima qualidade, com excelente quadro de professores, diversos doutores, laboratórios e bibliotecas bem equipados, mas existem, em maior quantidade, aquelas que formam seus alunos "nas coxas". O sujeito pega seu canudo, mas não é páreo na hora de concorrer a um cargo por concurso e nem é o primeiro a ser selecionado para um emprego mais bem remunerado.

Tornou-se a salvação para os estudantes com algum poder aquisitivo que não conseguiam uma cadeira nas estaduais e federais, por falta de preparo ou de sorte.

Ao invés de exigir a melhora do ensino médio nas esolas mantidas pelos governos, de aumentar a quantidade de vagas nas universidades públicas, abrir mais escolas de terceiro grau, o governo FHC propôs o sistema de cotas para negros, índios, pobres e oriundos do sistema público de ensino. Fez a proposta e saiu de fininho, deixando a batata quente nas mãos do governo Lula.

Os cursos da moda ainda existem, mas moda passa, acaba na próxima estação, o que faz com que a desistência do alunado aprovado seja muito acima do aceitável. O sistema de cotas nas poucas escolas que as adotaram como norma, também gera uma desistência que poderia ser prevista pelo Ministério da Educação. O jovem passa para odontologia, por exemplo, por ser oriundo de escola pública, mas, dificilmente, terminará o curso por dois motivos principais: 1. Não tinha o conhecimento elementar de química e biologia, matéria base do curso. Após os primeiros fracassos, desistem; 2. Mesmo em universidades públicas é um curso caro, muito caro. São essenciais livros e equipamentos, muitos deles importados, que chegam a custar o que a família inteira do estudante gasta de transporte por mês.

Muito se critica o sistema de admissão por vestibulares, mas não se apresentou nenhuma alternativa mais democrática e justa que ele. O sistema de cotas poderá causar sérios danos dentro de 10, 15 anos depois de serem adotados em todas as universidades públicas. A discriminação contra os cotistas já existe no ambiente acadêmico. Cursos onde o número de formados é apenas um pequeno percentual dos que entraram, principalmente os de engenharia, matemática e física, terão um número ainda menor de profissionais jogados no mercado, o que causará uma carência enorme desses profissionais.

É uma tortura para os competidores? É. É desgastante financeira e emocionalmente para suas famílias? É. Mas não há saída, pelo menos a médio prazo. O que lhes resta? Cabeça fria e dedicação aos estudos. O resto fica por conta da sorte.

quarta-feira, novembro 23, 2005

"Se alguém vender bosta em pó, tem sempre um bobo pra comprar."
(Chico Moura)




Tem texto meu hoje no blog da Chris.



Tá indo novo material para o site do Pedro.




Quem Vai Querer Comprar Banana?

- Quem vai nas coxas... da galinha?
- Abaxaqui, abricu e xeira!
- Seu pamonha! Seu pamonha! Seu pamonha!
- Ô, bonito! Ô, bonita! Cê quer...

O grito de vendedores ambulantes, além de um instumento de marketing eficiente pela criatividade e alegria, é um elemento cultural nacional oriundo dos mercados asiáticos, indianos principalmente, e africanos.

Em toda cidade brasileira esses tipos pobres, sofredores, que não têm sábado nem domingo porque a fome não escolhe dia, são encontrados. Muitas vezes nos passam despercebidos, mas quem admira os trejeitos da cultura popular se encanta.

Já guri eu me divertia cmo o vendedor de quebra-queixo que passava em minha rua por volta das três da tarde. Não entendia o que ele queria dizer naquele seu grito impostado, mas isso não evitava minhas risadas com a velocidade com que gritava:

- Quebra-beijo, quebra-seixo, quebra-queixo!

No decorrer dos anos fui ouvindo mais uns e mais outros. Torcia o nariz para os mais agressivos e para aqueles que, na minha visão pudica de outrora, ofendiam as mulheres acentuando seus atributos físicos. Se eu soubesse o quanto elas gostavam e da existência da enorme porção da personalidade chamada ego, não teria demorado tanto tempo para minha primeira conquista amorosa.

A propósito, o primeiro grito do início desse texto era de um senhor baixinho e barrigudo que andava pelo centro de Eunápolis, umbigo à mostra e uma bacia na cabeça, vendendo coxinhas de galinha. Seu grito era ouvido a distâncias enormes e assustava os distraídos que estavam por perto.

O segundo era de um vendedor de frutas de Belém. Os produtos que vendia? Abacaxi, abricó e macaxeira, que não é fruta, mas tudo bem.

O terceiro é óbvio. O vendedor de pamonha passa sob minha janela há dois anos, sempre entre três e quatro horas da tarde. Um dia eu, de brincadeira, perguntei por que me chamava de pamonha. "Não é o senhor, não, doutor, isso é márquete".

E o quarto é o vendedor de qualquer coisa. Um dia ele aparece com uvas, no outro cocos. Pode trazer limões, cds piratas, meias suspeitas, cartões telefônicos, espremedor de frutas... O que vier ele vende pelas ruas do centro de Fortaleza.

terça-feira, novembro 22, 2005

Dizem que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança.
Dizem que os sentimentos mais nobres o homem guarda na alma.
Dizem que Deus não tem alma.
Devo deduzir que Deus não tem sentimentos nobres?



Deus por um dia

Certo dia Deus deu um faniquito, sabe-se lá por quê, deve estar ficando velho. Procurou um anjo-médico e esse lhe passou um atestado licenciando do trabalho por um dia. O diagnóstico: virose, o que significa que o médico-anjo não sabia extamente de que mal O Senhor sofria.

Depois de bilhões de anos de batente, sem faltar um dia, Deus não sabia como é esse negócio de licença médica, mas sabia que alguém teria que substituí-lo. O mundo não poderia ficar desgovernado esse tempo. Pobre e ingênuo Deus... O mundo está desgovernado há muito tempo. Quem poderia oupar o cargo nas próximas 24 horas? Não havia ninguém à Sua altura.

"Já que o povo da Terra gosta tanto de loteria, vou sortear", pensou Deus. Vendou os olhos, apontou Seu dedo para a Terra e soltou um raio. Eu, que vinha tranqüila, despreocupada e irresponsavelmente caminhando pela rua, recebi aquela descarga bem no alto do cocoruto. Num átmo me senti o sujeito mais poderoso do planeta. O tal raio trouxera implícita a mensagem de que eu estaria no comando do universo pelo próximo dia inteirinho, e aquilo era uma ordem. Peraí! Se eu era Deus, como alguém ousava me dar ordens?

Relevei a revolta inicial, afinal estava realizando um daqueles desejos que qualquer serzinho oriental já imaginou ser digno de.

Por alguns instantes fiquei zonzo com tantas e tantas vozes, nas mais diversas línguas me pedindo coisas, me agradecendo, me maldizendo... Imediatamente entendi porquê a maioria dos pedidos dos mortais não são atendidos. Impossível ouvir alguém direito naquela babel em meus ouvidos.

Podia matar o trabalho naquele dia, a causa era justíssima. Dali mesmo dei meia volta e voltei pra casa. Tranqüilinho na minha cama, descansei uma hora pensando no que fazer. Que obra digna do Divino eu poderia realizar para que o Todo-Poderoso pudesse se orgulhar e marcar a história do universo para todo o sempre? Só um pequeno diazinho... Parecia pouco, mas levando-se em conta que Deus fez tudo isso em apenas sete, claro que em um eu poderia fazer coisa a beça, até mesmo desfazer tudo. É ou não é muito mais fácil derrubar uma casa do que construí-la? Taí! Desfazer tudo!

Na minha segunda hora de "deusado" esterelizei todos os animais terrestres, incluindo os homens e mulheres. Acabou-se de vez aquele papo de "crescei e frutificai". Ficou tudo tão calmo... Nada de berros, urros, miados, trinados irritantes... Desfiz os homens e mulheres logo depois, desfiz as feras, os gados e répteis. Legal! Os maiores criadores de problemas do universo não existiam mais.

Na hora seguinte me dediquei a esterelizar os animais marítimos. Essa bichara provou, no decorrer da história, que só servia para alimentar o corpo e os bolsos dos humanos, não havendo mais humanos não haveria necessidade deles.

Fui ficando cansado com a trabalheira toda realizada em tão pouco tempo, estava precisando dar uma descansadinha, mas não havia tempo. Muita luz, muito calor. Quer saber? Apaguei o Sol, a Lua e as Estrelas. Parei com esse negócio de noite e dia, mês e ano.

Só que não sou morcego. Nos primeiros passos naquela escuridão dei de cara numa árvore. Ficou um enorme galo divino na minha testa e doeu pra burro! É eu podia falar isso que os burros não existiam mais, não poderiam se ofender. Mas árvores haviam e estavam me machucando. Dediquei uma hora a desfazê-las, todas, desmatando mais que madeireiro capixaba. Limpei o planeta de tudo quanto é tipo de árvore.

Legal, o ambiente estava ficando ideal. Sem barulho, sem gente chata, sem calor, sem frio, sem choro de crianças, sem eco-xiitas, sem políticos safados, sem animais perigosos, sem árvore no meio do caminho... Ploft! Em minhas divagações, enfiei o pé numa poça de lama. Sabia que havia esquecido alguma coisa, a água!

Mais uma hora de serviço. Passei esse tempinho passando rodo e pano em toda a superfície, retirando toda a água. Descriei a água.

Fiquei em pé, sozinho sobre uma bola de areia enorme, sem qualquer utilidade. Então pra quê ficar com aquele monstrengo atrapalhando o trânsito. Quer saber? Desfiz a Terra.

Sem ninguém em que mandar, nada a gerenciar, não havia qualquer coisa para Deus fazer. Bem que eu poderia me desfazer também, mas dizem que esse negócio de suicídio leva a gente pro inferno. Sei lá se aquele ambiente é aquele horror todo que dizem... Melhor não arriscar.

Procurei um cantinho confortável no Éter, me recostei e resolvi descansar mais um pouquinho. Me restavam dezessete horas de "deusado" e não havia nada o que fazer. Não havia gente em quem mandar ou amedrontar, nenhum elemento a gerenciar, terremoto, maremoto ou qualquer outro flagelo pra criar... O ócio era o que me restava. Dezessete horas de ócio nada criativo.

Caí no sono e só acordei sete dias e dezessete horas depois e estava tudo do jeitinho que estava antes do raio divino me atingir. Acho que o Senhor não gostou nadinha da minha "desobra".




Isso aí de cima faz parte do concurso interno da comunidade Blogueiros Malditos, do Orkut.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Como diminuir as filas nos caixas eletrônicos.
Os cartões magnéticos deveriam ser entregues somente a quem:
1. Sabe ler e escrever;
2. Saiba interpretar um texto;
3. Saiba usar um computador;
4. Tenha passado por psicoteste.




O Poetrando está atulaizado.




Nada de Anormal

Os mais simplistas podem dizer que são avisos do além, assim como os exotéricos e os bobinhos que acreditam em fadas, elfos e gnomos. Os mais céticos nem percebem a relação. Os descrentes afirmam que são apenas coincidências. Como, até hoje, não sei em que grupo me colocar, apenas acho interessante certas coisas co-relacionadas que nos acontecem de vez em quando.

Antes de vir para a Bahia eu morava em Belém. Entre os inúmeros amigos que deixei por lá havia o Paulo Rocha, Paulo Bico Doce, para os da turma. Esse apelido ele ganhou por ser o maior bicão que todos nós conhecíamos. Se ficava sabendo de uma festa, se auto-convidava; nas noitadas nunca tinha grana para dividir a despesa; cantava as namoradas nos amigos na maior cara de pau; aparecia na casa de qualquer um sempre na hora de alguma refeição; pedia para dormir em qualquer casa. Uma figuraça. Alguém o apelidou de Jibóia numa época em que estava cheio de pano-branco e, segundo dizem, não me comprometam, ele tinha "aquilo" do tamanho de uma serpente.

O sujeito era a cara do Dalto, lembra do Dalto? Mas esse apelido o enfurecia. Por uma questão de amizade preferimos não chamá-lo assim, a não ser quando queríamos vê-lo nervoso, o que é sempre divertido entre amigos de verdade.

O cara era tão bicão, mas tão bicão, que quando eu disse que estava vindo embora ele simplesmente se escalou, "vou com você", e veio! Agora, adivinhem quem bancou a vinda dele? Mesmo estando mais limpo que banheiro do Hilton, não consegui me livrar do cara. Eu tinha um convite de uma família amiga para me hospedar na casa dela até me arrumar. Um doce para quem adivinhar onde ele se hospedou. Ok, devo doces para todos. Apois num foi, gente? O Bico simplesmente arrumou um colchonete de um vizinho da tal família, vizinho esse que, logicamente ele não conhecia, e dividiu o quarto comigo.

Eu vim para trabalhar enquanto ele veio a passeio. Aliás, sempre deixou claro que veio ao mundo a passeio. Dois meses depois de se meter em mil confusões e se empapuçar de maconha com os amiguinhos que arrumou, bateu saudade dos urubus do Ver-O-Peso e voltou pra casa.

O pai dele, seu Rocha, era um outro tipo inesquecível. Um metro e oitenta, carequinha em cima e cabelos longos e lisos embaixo, era funcionário aposentado da FUNAI. Depois de tantos anos vivendo na floresta, não se habituava mais em viver dentro de casa, muito menos na cidade grande. Pegou suas economias e comprou uma casinha na praia do Outeiro. Guardando os resquícios da beleza que provavelmente tivera na juventude, passava os dias passeando pela praia só de short, com um rabinho de cavalo com os poucos cabelinhos que lhe sobraram. Sentava-se na barraca da Ana, pedia uma água de coco e gastava saliva xavecando o mulherio que aparecia. Dona Cléria nem tchun. Até se divertia com as tentativas de aventuras amorosas do marido.

Essa noite sonhei que estava num lugar misto do conjunto da Cohab onde a família Rocha morava quando a conheci e da praia onde a visitei pela última vez. Eu procurava a casa do Bico. De longe ouvi uma voz de tenor cantando alguma coisa e identifiquei a origem da música como uma casa de madeira trabalhada, uma miscelânea de pinturas e esculturas. Aquela aparência sui gêneris deixava claro que aquela era a casa do meu amigo. Ao bater à porta ele me recebia e a voz continuava em seus estertores tenores. Ao entrar eu identificava o Pavarotti como um sujeito cinquentão, mas forte, completamente careca, parrudo, branco como uma tapioca, com uma garrafa de cerveja na mão e alegre como uma pomba-gira.

Ele abraçava o Bico e dizia "está bem de pai novo, hein, meu filho?".

Peraí! Pai novo? Aquele cara era padrasto do Paulo Bico Doce? Por onde andaria seu Rocha?

Pelo ar de tristeza do meu amigo, deduzi que seu pai havia morrido.

Acordei com esse sonho na cabeça e fiquei com ele enquanto fazia a higiene pessoal.

Procurei uma agenda antiga onde anotara seu telefone e liguei. Eram sete horas. Do outro lado o Paulo atendeu, fez uma pequena festa quando soube que era eu, mas logo mostrou a voz triste ao dizer que estava chegando do velório do pai, que seria enterrado às dez.

Coincidência? Metafísica? Telepatia? Pouco importa. Fiquei triste por ele.

domingo, novembro 20, 2005

Tenho que lembrar de não esquecer... esquecer... Ih! Esqueci!




Coluna nova enviada para o site do Pedro.


O Poetrando está atualizado




Jurandir e o Raciocínio Lógico

Talvez não para ele, mas para os outro o Jurandir é um sujeito muito engraçado. Quando guri seus irmãos o chamavan de "o voador", conseqüência de sua facilidade em desligar-se do ambiente ao seu redor e entrar com força em seu próprio mundo.

Sem mais nem menos gesticulava enquanto balbuciava algo ininteligível para os demais. Voava mais fácil que albatroz.

Garoto amável, sempre disposto a ajudar alguém, assim manteve-se por toda a vida, uma daquelas almas que vão para o céu, caso exista céu.

Ajudava também a mãae nas atividades do lar sempre que solicitado, mas sempre havia um desastre à vista quando isso ocoria.

Certo dia a mãe pediu que ele retirasse a mesa do almoço, o que fez sem reclamar, na maior boa vontade. Aonde foram parar os pratos e talheres a mãe só descobriu quando ligou a máquina de lavar roupas.

Maiorzinho e independente, o próprio Jurandir preparava seu café da manhã antes de sair para a escola, só que, não raramente, fritava a casca e jogava o ovo no lixo, ou colocava o açúcar no coador e o póde café no fundo do bule.

Bom aluno, nunca repetiu de ano. Passou no primeiro vestibular que prestou. Na faculdade apaixounou-se por Eliane e foi correspondido, casaram-se, tiveram tr~es filhos lindos. O fato de ter ido para a solenidade de formatura com paletó, gravata e calça de pijama não causou estranheza nos colegas nem nos mestres, que tiveram quae explicar ao reitor que não havia nada de rebeldia naquele ato.

Certa manhã Eliane recebeu um telefonema do marido. Estava ele no banco para abrir uma caderneta de poupança para os filhos, mas tinha um probleminha: como era mesmo o nome das crianças? Perguntou isso à mulher, mesmo estando com as carteiras de identidade dos filhos no bolso.

sexta-feira, novembro 18, 2005

- Alô. Eu gostaria de falar com o Kennedy...
- Ele está no bar, aquele vagabundo, cheio de homens na mesa.
- Quem está falando?
- Marcos, o namorado dele.
- COMO É QUE É?
O probre Kennedy, seja lá quem for, deve estar sofrendo hoje.



Gúliver e as Aranhas

O garoto tinha pavor de aranahas. Não era medinho, frescurinha, mas verdadeiro pavor, fobia em último grau. Seu Ariosvaldo, vizinho do menino Gúliver, apontador de jogo do bicho e exotérico auto-didata, tentava convencer o pequeno que não havia por quê ter merdo. Tirando algumas espécies mais venenosas e mortais, na sua maioria eram benéficas, tinham até seu lado de boa sorte. Sonhar com aranha era sinônimo de dinheiro chegando, dizia Ariosvaldo.

Nada adiantava. Seu pânico não diminuíra. Quando sonhava com aranhas acordava gritando e com o pijama molhado. Evitava o jardim por saber que lá estavam, se visse uma pequena papa-mosca na parede de um cômodo da casa só voltava ali depois que a mãe garantisse que já havia eliminado o bicho que ele chamava de polvo, por conta de tantas pernas, apenas para evitar a palavra "aranha".

Convidado por um amigo de seus pais, foi passar férias em João Pessoa. Sociável, logo enturmou-se com a gurizada da vizinhança e passavam os dias em mil brincadeiras. Como o casal anfitrião não tinha filhos, paparicavam o ativo Gúliver e o deixavam à vontade para fazer o que bem quisesse.

Certo final de tarde a molecada bateu à porta dos Alvez, apavorada: Gúliver havia sumido. Estavam brincando de esconde-esconde, mas há mais de duas horas a turma tooda o procurava e nada, nenhum sinal do amiguinho.

A preocupação foi-se espalhando pela vizinhança, todos à caça do guri, amiguinhos, pais, tios, rebuscavam cada canto, telhados, fundos dos quintais, altos das árvores, sótãos e porões, cada buraco da rua era revistado e nenhuma pista encontrada.

Anoitecia quando a polícia apareceu, tomou depoimento dos Alves, dos vizinhos, dos guris, pegaram foto. O Alves já ligara para os pais de Gúliver que se apressaram em comprar passagens de avião. Um pandemônio.

Tarde da noites, exaustos e só lhes restando as orações, todos voltaram para suas casas e o silêncio tomou conta da rua.

Enquanto rezavam baixinho antes de dormir, os Alves ouviram um choro baixinho, quase um sussurro. Vinha de fora. Um misto de esperança e euforia fez com que eles, pé ante pé, abrissem a porta do quintal e seguissem de leve, como que com medo de assustar o chorinho, a direção dos soluços fraquinhos.

Vinha do quarto de despejo. Abriram a porta bem devagar, o choro mais berto. Dentro de uma caixa de fogão estava Gúliver todo encolhidinho, banhado em lágrimas, já sem forças.

Telefonemas dados, polícia liberada, toda a vizinhança reunida novamente, agora na casa dos Alves comemorando alegremente a reaparição do garoto, o interrogava. Por que Gúliver não respondera a seus chamados? Por que ficara dentro da caixa esse tempo todo?

- Quando entrei na caixa vi uma aranha enorme lá dentro e fiquei com medo de me mexer e ela se jogar sobre mim.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Quem pede para ser enganado, merece ser enganado

"Três Contos no Conto da Loteria"


Seu Vilson sustentava dona Bena e os onze pimpolhos sem luxo, mas sem carências, com as vendas de sua bodega lá nos confins de Coquinhos.

Feijão de corda, rapadura, querosene pra fifó, miss pro cabelo, carmim pros beiços das moças, cachaça pros da roça, jerimum do quintal, fumo de corda pra seu consumo e dos camaradas, jornal de ontem vindo da capital, arroz com casca e descascado, Q-Suco de morango, chope da fruta com água da torneira, pilhas Ray-O-Vac amarela pros radinhos de todas as casas do arraial, corda pra laço e esporas... de tudo tinha na bodega.

Vidinha pacata de gente pacata. Mas os filhos cresciam e Waldomiro, o mais velho, já sonhava em estudar na capital; Jeisane se encantara com Zé dos Dentes, o retratista, e queria casar; Ariosvaldo queria comprar a picape do compadre Tinzim e fazer frete na feira. Os sonhos eram muitos e o pequeno conforto dado pela renda da mercearia estava virando aflição. Pai zeloso seu Vilson não podia frustrar os desejos da filharada, mas não tinha estudo, não tinha ciência de como melhorar os ganhos, não tinha capital para ampliar o negócio. Os santos da igreja de dona Bena não atendiam aos pedidos de melhoria, fora a carestia do dia a dia.

Valdirene e Valenciane, mocinhas bonitas e siligristidas, já chamavam a atenção dos rapazes e careciam de roupas novas, berloques e maquilagem. Tava ficando difícil...

Passou a desviar uma moeda por dia da féria para ir a Ibicaraí no sábado e fazer uma fezinha nos treze pontos da loteria. Sua salvação estava no cartão perfurado. Passara a sonhar com os milhões de cruzeiros do prêmio.

Venderia a venda, compraria uma casinha em Ibicaraí, mandava os meninos estudarem onde quisessem, compraria a picape pro Ariosvaldo e uma Rural para ele, trocaria o radinho de pilha por uma televisão Telefunken das que vira na loja em Itabuna, compraria aquele jogo de sofá de napa vermelha que dona Bena tanto gostara... Surrupiava a moeda e sonhava.

Todo domingo ligava o rádio no final da tarde e conferia os treze jogos, mas nunca passava de sete acertos. Na segunda-feira via a notícia de que um apostador de São Paulo ganhara a bolada. Na outra semana, um de Minas e um do Rio de Janeiro. Na terceira, um de Curitiba, dois de São Paulo e um de Fortaleza. E pensava, Deus só gosta dos ricos, para ele capital era lugar de ricos com todos aqueles automóveis, cinema, teatros, lojas, gente bem vestida.

Talvez Deus fosse o segredo para ganhar na loteria.

No domingo surpreendeu dona Bena vestido, cedinho, com sua melhor roupa. Iria à missa com ela naquele dia, coisa que não fazia havia anos. Passou na venda, pegou um pacote de velas e, de braço dado com a esposa, foi de linho branco rumo à catedral, que nada mais era que uma igrejinha branca com uma torre.

Assistiu a todo o serviço, ajoelhou, ficou em pé, cantou os hinos e se benzeu, tudo diretinho. Queria que Deus o notasse.

Terminado o culto religioso, foi até o altar, abriu o pacote de velas e acendeu todas as dez enquanto rezava e prometia a Bom Jesus da Lapa que se ganhasse na loteria contrataria um pau-de arara e levaria todos os velhinhos de Coquinhos para a romaria do santo em sua cidade no mês de agosto.

À noitinha, ouvido no rádio, conferiu o volante. Coração a mil a cada ponto conquistado, quase enfarta quando chega ao último e percebeu que não errara um jogo. Chamou dona Bena e cochichou na cozinha que estavam ricos, que ela não contasse nada a ninguém para evitar olho grande.

Na manhã seguinte colocou uma placa de "vende-se" na fachada da bodega. Iniciava ali a concretização de seus planos. Mandou as meninas tomarem conta do negócio e pegou a primeira cata-nica para Ibicaraí. Comprou uma casa e foi a Itabuna de onde voltou com a Telefunken.

Aos pouquinhos as coisas foram se arrumando. Vida nova para toda a família.

Não cumprira, porém, o pacto que fizera com o santo.

Os filhos foram saindo de casa até o dia que se viu sozinho com sua velha. O dinheiro acabou, não tinha mais bodega e passou a viver com a mesada que os fihos mandavem de longe.





Esse conto participa do concurso interno da comunidade dos blogueiros malditos no Orkut.

terça-feira, novembro 15, 2005

Não costumo postar textos alheios, mas li esse lá na Ostra e ela convocava todos a postarem-no também. Levando-se em conta a indignação do autor, por eu concordar com todos os pontos, por ser urgente que mudemos nossos atos se queremos que o país melhore, por ter consciência que o Brasil só se tornará um país de verdade quando seus cidadãos se derem conta que quem faz a pátria não são os governos, mas cada um de nós, aceitei a sugestão da Ostra e resolvi repetir aqui esse texto. Convoco-os agora a lerem-no por completo.



No blog do Pedro tem coluna nova.




Precisa-se de Matéria Prima Para Construir Um País


A crença geral, anterior ao governo atual, era que Sarney e Collor não serviam, bem como Itamar e Fernando Henrique. Agora dizemos que Lula não serve. E o que vier depois de Lula também não servirá para nada. Por isso estou começando a suspeitar que o problema não está no ladrão corrupto que foi Collor, ou na farsa que é o Lula. O problema está em nós. Nós como povo.

Nós como matéria prima de um país. Porque pertenço a um país onde a "esperteza" é a moeda que sempre é valorizada, tanto ou mais do que o dólar. Um país onde ficar rico da noite para o dia é uma virtude mais apreciada do que formar uma família, baseada em valores e respeito aos demais. Pertenço a um país onde, lamentavelmente, os jornais jamais poderão ser vendidos como em outros países, isto é, pondo umas caixas nas calçadas onde se paga por um só jornal e se tira um só jornal, deixando os demais onde estão.

Pertenço ao país onde as "empresas privadas" são papelarias particulares de seus empregados desonestos, que levam para casa, como se fosse correto, folhas de papel, lápis, canetas, clipes e tudo o que possa ser útil para o trabalho dos filhos... E para eles mesmos. Pertenço a um país onde a gente se sente o máximo porque conseguiu "puxar" a tevê a cabo do vizinho, onde a gente frauda a declaração de imposto de renda para não pagar ou pagar menos impostos. Pertenço a um país onde a impontualidade é um hábito. Onde os diretores das empresas não valorizam o capital humano. Onde há pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo nas ruas e depois reclamam do governo por não limpar os esgotos. Onde pessoas fazem "gatos" para roubar luz e água e nos queixamos de como esses serviços estão caros. Onde não existe a cultura pela leitura (exemplo maior nosso atual presidente, que recentemente falou que é "muito chato ter que ler") e não há consciência nem memória política, histórica nem econômica. Onde nossos congressistas trabalham dois dias por semana para aprovar projetos e leis que só servem para afundar ao que não tem, encher o saco ao que tem pouco e beneficiar só a alguns.

Pertenço a um país onde as carteiras de motorista e os certificados médicos podem ser "comprados", sem fazer nenhum exame. Um país onde uma pessoa de idade avançada, ou uma mulher com uma criança nos braços, ou um inválido, fica em pé no ônibus, enquanto a pessoa que está sentada finge que dorme para não dar o lugar. Um país no qual a prioridade de passagem é para o carro e não para o pedestre. Um país onde fazemos um monte de coisa errada, mas nos esbaldamos em criticar nossos governantes. Quanto mais analiso os defeitos do Fernando Henrique e do Lula, melhor me sinto como pessoa, apesar de que ainda ontem "molhei" a mão de um guarda de trânsito para não ser multado. Quanto mais digo o quanto o Dirceu é culpado, melhor sou eu como brasileiro, apesar de ainda hoje de manhã passei para trás um cliente através de uma fraude, o que me ajudou a pagar algumas dívidas. Não. Não. Não. Já basta.

Como "matéria prima" de um país, temos muitas coisas boas, mas nos falta muito para sermos os homens e mulheres que nosso país precisa. Esses defeitos, essa "esperteza brasileira" congênita, essa desonestidade em pequena escala, que depois cresce e evolui até converter-se em casos de escândalo, essa falta de qualidade humana, mais do que Collor, Itamar, Fernando Henrique ou Lula, é que é real e honestamente ruim, porque todos eles são brasileiros como nós, eleitos por nós. Nascidos aqui, não em outra parte... Me entristeço. Porque, ainda que Lula renunciasse hoje mesmo, o próximo presidente que o suceder terá que continuar trabalhando com a mesma matéria prima defeituosa que, como povo, somos nós mesmos. E não poderá fazer nada... Não tenho nenhuma garantia de que alguém o possa fazer melhor, mas enquanto alguém não sinalizar um caminho destinado a erradicar primeiro os vícios que temos como povo, ninguém servirá. Nem serviu Collor, nem serviu Itamar, não serviu Fernando Henrique, e nem serve Lula, nem servirá o que vier. Qual é a alternativa? Precisamos de mais um ditador, para que nos faça cumprir a lei com a força e por meio do terror? Aqui faz falta outra coisa. E enquanto essa "outra coisa" não comece a surgir de baixo para cima, ou de cima para baixo, ou do centro para os lados, ou como queiram, seguiremos igualmente condenados, igualmente estancados... Igualmente sacaneados!!! É muito gostoso ser brasileiro. Mas quando essa brasilinidade autóctone começa a ser um empecilho às nossas possibilidades de desenvolvimento como nação, aí a coisa muda... Não esperemos acender uma vela a todos os santos, a ver se nos mandam um Messias.

Nós temos que mudar, um novo governador com os mesmos brasileiros não poderá fazer nada. Está muito claro... Somos nós os que temos que mudar. Sim, creio que isto encaixa muito bem em tudo o que anda nos acontecendo: desculpamos a mediocridade mediante programas de televisão nefastos e francamente tolerantes com o fracasso. É a indústria da desculpa e da estupidez. Agora, depois desta mensagem, francamente decidi procurar o responsável, não para castigá-lo, senão para exigir-lhe (sim, exigir-lhe) que melhore seu comportamento e que não se faça de surdo, de desentendido. Sim, decidi procurar o responsável e estou seguro que o encontrarei quando me olhar no espelho. Aí está. Não preciso procurá-lo em outro lado.

- João Ubaldo Ribeiro -

segunda-feira, novembro 14, 2005

Respeito é bom? Não sei, nunca comi.



Adolescência e Inconseqüência

Adolescentes rimam com inconseqüência, estão sempre à disposição de uma zoação, de uma alegria qualquer, seja lá no que der depois. Curioso como agem como se "o mundo fosse acabar à meia noite" enquanto os idosos estão sempre sonhando com o amanhã.

Quando se juntam mais de dois dispostos a uma diversão qualquer, imprevisível o resultado, mas haverá sempre uma vítima em potencial.

Zé, Amadeu e Ariston, inseparáveis amigos, aprontavam mil e uma, mas, garotos bem educados, não se metiam em confusão, não provocavam vítimas, não causavam danos à coisa pública ou alheia.. Divertiam-se entre si, mesmo que a vizinhança se incomodasse, eram suas próprias vítimas. Colegas de classe na escola, nos finais de semana reuniam-se para estudar, daí as notas excelentes para a incompreensão dos colegas e dos professores. Como aquele tri que vivia aprontando, gazeava aula, era constatemente expulso das aulas, poderia ter aquelas notas? Como poderiam ser os melhores da turma?

Suas atitudes e notas causavam inveja, desprezo, admiração e paixões, eram os líderes naturais. Quando algo sério atrapalhava a relação entre professores e alunos ou entre esses e a admnistração, sempre tomavam a frente do movimento, negociavam em nome dos colegas, mesmo sem terem sido eleitos para isso. Bons em argumentos, quase nunca perdiam uma questão e suas argumentações eram acatadas por todos os discentes.

Os professores, mesmo os que se enciumavam por verem o trio mais importante do que eles na admiração dos alunos, os respeitava. Sabiam que se o desafiasse fora dos problemas e questões propostos, teriam problemas em dar suas aulas. Um professor, porém, os tinha como xodós e a recíproca era verdadeira, Alfredo, Fred para o trio, mestre em literatura.

Gordinho, baixinho, com gestos efeminados, sempre vestindo calças de tergal e camisas de algodão muito coloridas e espalhafatosas, nada disso chamava mais a atenção para figura yão única do que sua peruca. Beirando os sessenta anos, Fred não dava-se ao trabalho de atualizar seu ornamento capilar sintético para que esse combinasse com os fios brancos naturais que apareciam na faixa inferior do couro cabeludo. Por ser um senhor respeitável, ninguém ousava fazer piada sobre isso com o mestre, mas pelas costas era motivo de gozações.

Ariston, aquele que tinha que ser contido por sempre desejar uma aventura mais perigosa,, não podia evitar pensamentos cruéis sobre aquela peruca.

No último dia de aula do último ano deles na escola, resultados da aprovação nas mãos, mais uma etapa concluída, professores e alunos no pátio em confraternização, lágrimas, sorrisos, abraços e despedidas. Ariston, coração acelerado e pernas trêmulas, aproxima-se por trás do mestre Alfredo, arranca-lhe a peruca e atira para o alto como um capelo.

Ali acabou-se a festa com o grito estridente, feminino, desesperado de Fred, o olhar de pena de todos para o professor, de ódio e reprovação para Ariston que, depois de anos como ídolo, fizera, enfim, uma vítima com suas brincadeiras.

quinta-feira, novembro 10, 2005

Lua de mel é bom, mas dá um suadouro...




Por motivos nobilíssimos estarei me ausentando até segunda-feira, mas nem pensar para quem acha que vou explicar os motivos aqui...



Já mandei minha próxima coluna para o site do Pedro. Pra quem reclamava que o velho Esculacho era melhor, eis uma oportunidade de comparar.




Tim Maia de Boteco


Lhe deram o apelido de Tim Maia, começando o texto dessa maneira evita-se a necessidade da descrição física de tão insólito personagem. Quem era, de onde vinha, o que fazia... todos desconheciam e nunca lhe perguntaram.

O Tim era pontual. Todos os dias chegava à Adega do Rei, que não era uma adega, mas um boteco, e onde não havia nenhum rei, mas um aviador aposentado, às sete de cada noite. Não tinha preferência por qualquer mesa. Sentava-se sempre sozinho, pedia uma cerveja e ali ficava, por horas, bebendo, comendo bolinhos de bacalhau ou outro petisco, obsevando o movimento das pessoas,, os músicos, os garçons, os choros e gargalhadas, carinhos e porradas dos demais freqüentadores. Não se via em seu semblante qualquer expressão de alegria ou tristeza, satisfação ou reprovação. Apenas estava ali. Com tantos bares pela área poderia estar em qualquer um, mas estava ali todas as noites, sinal de que gostava ou pouco se importava.

Como cada ser humano se destaca dos demais por alguma característica única, o Tim tinha a quietude. Era único e por isso se destacava. A maioria dos freqüentadores da Adega eram velhos conhecidos entre si ou do comandante-botequeiro. Se cumprimentavam, se divertiam e brigavam para depois fazerem as pazes naqueles cômicos abraços e choros bêbados no lugar que escolheram por ser cômodo e agradável para todos. O Tim era diferente, não pertencia a nenhum grupo, pertencia ao bar e por isso se destacava.

Como a intimidade sempre leva ao relaxamento comportamental, o mesmo aconteceu com o velho Tim. Passou a embriagar-se, dormir sentado e cair da cadeira. Depois levantava-se, sacudia a poeira, pagava a conta e ia embora. Isso passou a repetir-se diariamente.

A coisa ficou tão contumaz que algum comerciante nato, gozador de qualquer coisa ou qualquer alguém ou apenas espertinho, criou um bolão. Por uma moeda cada pessoa poderia fazer um palpite do horário exato em que o calado Tim cairia da cadeira.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Se a febre aviária chegar ao Brasil, muita gente vai ter medo de sair de casa.




No site do Pedro minha coluna agora será nos moldes do que fazi aqui no Esculacho. Quem tem saudade (presunçoso eu? Imagina), pode curá-la por lá.



A Árvore

Há 100 metros da minha casa há uma árvore enorme, talvez 30 metros de altura. Meus parcos conhecimentos de botânica não me permitem dizer a que espécie pertence, sei, porém, que não é nenhuma madeira nobre ou os madeireiros que por aqui passaram até o início dos 90, quando ainda havia Mata Atlântica, não a teriam deixado de pé.

Aprendi com alguns desses madeireiros que as madeiras mais valiosas por sua resistência ou maleabilidade, são escuras, avermelhadas ou quase negras, por isso que aquela usada para encamisar pilastras e sustentar lajes na construção civil, por exemplo, são brancas, mais pobres, menos duradouras e mais comuns. Já as usadas em móveis de luxo, na decoração de interiores são, em sua maioria, mais escuras. Lógico que existem excessões em todas as regras, inclusive nessa.

A árvore que vejo da minha janela e de vários pontos da cidade, inclusive de algumas janelas da minha escola, está ali esquecida no terreno de uma escola estadual, esquecida mesmo, lá nos fundos onde ninguém passa, esse talvez seja o motivo de ainda encontrar-se lá, a única árvore naquele terreno enorme.

Seu tronco é fino para suportar toda aquela altura e isso me surpreende, me faz compará-la a um jogador de basquete. Não produz frutos ou flores coloridas, não tem porte majestoso, não oferece sombra para ninguém com sua pouca folhagem além de estar distante de qualquer casa ou caminho de gente, mato ao redor. Não se vê em seus galhos ninhos, mas há anos, ela me impressiona e já a acho bonita.

terça-feira, novembro 08, 2005

"... fazer da bosta dinheiro pra ver o povo enricar."
(Mestre Ambrósio)


Assim Nascem As Aleivosias

Zé e Miguel, cidade muito pequena do interior, na época das cadeiras nas calçadas, das portas constatemente abertas, época em que se podia dormir numa rede na varanda em noites quentes tendo como única preocupação as muriçocas.

Dois adolescentes saudáveis e brincalhões, educados sob as normas rígidas de então, época em que se cedia lugar para as mulheres e os mais velhos, em que se dava bom dia para desconhecidos na rua, que os homens usavam chapéus e os retiravam em reverência e respeito, época em que se pedia "por favor" e se falava "com licença" e "muito obrigado".

Cada qual em sua bicicleta iam à escola e às matinês, porque naquela época os cinemas do interior eram cinemas e igrejas eram igrejas. Época em que o leite era entregue de casa em casa trazido em garrafões de zinco no lombo do cavalo, pouco antes de chegar a bicicleta da padaria com os pães quentinhos. Época em que professores ensinavam e eram autoridades enquanto alunos aprendiam e eram respeitosos. As outras autoridades da cidade eram o prefeito, o padre, o médico e o delegado.

Zé e Miguel, quando se interessavam por uma moça - não eram garotas ou "minas" - iam falar com os pais dela para convidarem-na para um sorvete ou um passeio pela praça no domingo à tarde, isso porque as moças eram obedientes aos pais e os rapazes temiam os sogros e cunhados potenciais. Época em que não era crime dar umas palmadas em filho arteiro e ainda não existia o trauma infantil.

Miguel e Zé tinham uma paixão comum, a música, mas instrumentos eram caros e não havia onde comprá-los na cidade. Necessidade havia de encomendá-los da capital. Miguel adorava violão e piano, enquanto Zé queria um violão ou uma clarineta.

Iam à missa domingueira não para receberem as graças do pároco ou expiar seus poucos pecados, mas para verem o padre Brandon Wiright, estadunidense grandão, tocar o órgão. Eles tinham que tocar aquele órgão, mas a enorme peça de madeira negra lhes parecia mais sagrada que a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, padroeira do lugar, indignos se achavam de aproximarem-se do instrumento.

Certa madrugada, todas as casas apagadas, nenhum barulho nas ruas senão dos cachorros e pássaros noturnos, foram até a igreja. Escalaram a imagem gigante de um santo colocado do lado de fora, ao lado da enorme porta principal. Passaram por uma pequena abertura que tinha por função ajudar na ventilação da nave do templo, desceram por outra imagem do lado de dentro.

O tão sonhado órgão era deles, pelo menos por aquela noite.

Tocaram e tocaram, inventaram melodias, brincaram com as teclas de maneira que sua imaginação permitia.

O tempo passava e se sentiam Carlos Gomes, Villa-Lobos, Chopin, até que num estala Miguel caiu de volta ao chão.

Alertou Zé que estava tarde, dali a pouco a cidade acordaria. Na próxima noite voltariam. Escalaram um santo, desceram por outro e foram para suas casas.

Ao acordarem naquela manhã, um pouco mais tarde que o habitual, a cidade em polvorosa discutia a assombração que tocara órgão a noite inteira e dava risadas dentro da igreja. O padre Brandon Wright apenas sorria para os meninos.

segunda-feira, novembro 07, 2005

Os cães são extremamente carinhosos e fiéis. Quando aprenderem a cortar grama e trocar pneu, ganharão de 10 a zero dos homens, principalmente no quesito inteligência...
(Não sei quem disse isso)


"Monólogos da Vagina"

Criatividade em baixa e insônia em alta, ontem à noite fiquei morgando em frente à tv, controle remoto em ação. Se a televisão brasileira atravessa uma incrível crise de criatividade e de qualidade, nos domingos isso fica ainda mais evidente.

No final da noite, porém, uma frase no programa Businessda Rde TV! e um programa da GNT me impressionaram.

Entrevistando o presidente da Nívea no Brasil, João Dória Júnior perguntou por que ele havia abandonado a Marinha de Guerra depois de ralar pesado no Colégio Naval e na Escola Naval durante sete anos, saindo de lá como segundo tenente e engenheiro mecânico, ao que o entrevistaado respondeu "sabe quanto um segundo tenente ganha hoje? Mil e oitocentos reais. Um almirante ganha trêm mil e quatrocentos, menos que um ascensorista do Palácio do Planalto".

Na GNT assisti ao documentário Monólogos da Vagina. Perturbadorm impressionante, assustador, deprimente. Me fez vergonha de ser homem por conta de certos colegas de gênero. Não pelo tema, mas por ainda persistir tal tema em pleno século XXI.

Por ter começado a assistir depois de iniciado, não sei quem são aquelas mulheres, se componentes de uma ONG, se independentes, se ativistas contratadas, se atrizes, mas ficou claro a que se propunham.

Com início em Nova Iorque, contando com o apoio da mulher do então prefeito Rudolph Giulliani - segundo mais importante prefeito que a cidade já teve, perdendo apenas para La Guardia -, mulheres comuns e atrizes famosas davam depoimentos no palco de um teatro sobre os abusos físicos e psicológicos que sofreram em alguma fase da vida e que as marcaram para sempre. Mulheres fortes, contavam seus dramas com bom humor numa seriedade desconcertante.

Falavam de abusos sexuais na infância, estupros, surras que levavam dos companheiros, da falta de suporte das famílias e do Estado. Exorcizavam seus demônios em público depois de anos de silêncio, de se martirizarem com culpas que não tinham, mas que lhes eram imputadas. Queimavam seus medos na prça depois de tanto tempo de silêncio.

Não falavam frases na primeira pessoa, como "eu exijo respeito", mas, sim, "minha vagina merece respeito".

Depois do enorme sucesso em Nova Iorque, partiram para outros estados e países.

Em pequenas cidades do centro-oeste estadunidense, cidades conservadoras e moralistas, convenciam mulheres normais, donas de casa como a minha e a sua mãe, a subirem no palco e falarem abertamente das agruras que sofreram vida a dentro pela simples condição de serem mulheres.

Nas Filipinas fizeram mesa redonda com mulheres que foram escravas sexuais de soldados japoneses e que nunca tiveram sequer um pedido de desculpas por parte dos governantes daquele país.

Elas contam suas histórias e se sentem mais leves por poderem falar sabendo que as escutam, mais que escutar, ouvem e entendem e lhes são solidários.

Por vários momentos me vi em lágrimas como no momento do depoimento de uma índia Lakota, da Dakota do Sul, que teve que fugir de casa no meio da noite para não ser morta pelo companheiro e, dezenove anos depois, chorava porque os filhos não a perdoavam por terem sido abandonados por ela.

Incrível como acontecem tais atrocidades e não nos damos conta que nossas vizinhas, irmãs, amigas, mães, professoras, dentistas, garis, colegas, tantas mulheres enfim, estão passando por situações semelhantes nesse exato momento.

sábado, novembro 05, 2005

"Quem quer, faz. Quem não quer, manda." Ou: quem quer, faz. Quem não quer, não faz.



Chega a ser irônico ver ACM Neto reclamando de grampos telefônicos. Esse é o tema de minha coluna no site do Pedro.






Discurso e Prática

Para evitar as infinitas filas de banco coloquei todas as minhas contas de consumo em débito automático. Muito prático. Certas contas, porém, exigem que você encare aquele purgatório burocrático.

Com uma dessas contas nas mãos me vi numa "cobrinha" mais lerda que uma lesma engessada. Na minha frente, uma senhora. De repente ela me pede para guardar seu lugar que ela precisava tirar uma dúvida com o gerente. Claro, não me custava nada fazer aquele favor. Quinze minutos depois ela voltou e eu não havia andado dois metros.

Mais alguns minutos e ela volta a fazer o mesmo pedido. Dessa vez demorou bem mais. Eu a vi sair do banco. Alguma coisa ela tinha que fazer e não podia perder tanto tempo numa fila infinita. Tolinho como sou e mais compreensivo que padre no confessionário, não esquentei e nem reclamei quando, meia hora depois, ela voltou e reassumiu seu lugar. Nesse momento eu me encontrava muito pouco à frente do localem que me encontrava antes.

Passa-se um tempinho e mais uma vez ela sai dafila, demora uns dez minutos e volta acompanhada de um senhor com a calhamaço de contas, duplicatas, carnês... Opa! Peraí! Agora já era demais. Naquele momento já haviam muito mais pessoas atrás de mim do que na frente.

- Um momento, meu senhor, mas eu não posso permitir que o senhor fure a fila.

- Eu estou com ela.

- Isso eu percebi, por isso que estou falando isso. Ela está na fila, mas o senhor, não.

- Ela estava aqui me esperando.

- Se antes dela entrar na fila o senhor tivesse pedido para ela lhe fazer o favor de resolver seus negócios no banco, tudo bem, eu não falaria nada, mas agora não acho que seja algo moralmente aceitável.

- Que é, seu porra? Vai engrossar, filho da puta?

- Eu não o estou agredindo nem ofendendo e nem vou fazer isso. Estou vonversando civilizadamente.

Até eu me surpreendo como consigo manter a calma em momentos como esse. Se alguém me vir me descabelando, falando alto, rodando a baiana, pode saber que é por um motivo bobo. Em momentos de crise séria consigo me comportar como um monge tibetano.

- Ela está na fila, você mesmo guardou o lugar dela.

- É verdade. Ela até saiu do banco, foi almoçar ou sei lá o quê e eu, compreensivamente, permiti e não reclamei, mas o senhor está chegando agora. Não é justo que eu e mais essa multidão estejamos aqui há mais de uma hora e quinze minutos e tenhamos que perder o lugar para o senhor.

- Vai querer que ela saia?

- Não, meu senhor. Estou falando do senhor. Ela não precisa sair.

- Enfia essa fila no rabo, seu filho da puta!

- Engraçado como todo mundo fala em cidadania, pede respeito ao seus dirteitos, mas na hora de respeitar os direitos alheios e serem cidadãos, poucos conseguem.

Saiu bufando e maldizendo até minha quinta geração. Por sorte não desejo ter filhos.

Esse tipo de exemplo, infelizmente, são passados para seus filhos. É isso que faz com que uma criança de treze anos me ofereça suborno para aprová-la no final de ano.

Isso aconteceu ontem e aproveitei a deixa para dar um esporro nesse tipo de gente. E alguém aí acha que ela se ofendeu? Que! Ainda tentou se justificar apelando para seus objetivos de passar a qualquer custo. Numa hora dessas sinto até vontade de ser como aqueles professores antigos que perseguiam os alunos com quem não iam com a cara. Mas não sou a palmatória do mundo, apenas espero que alguns dos seus colegas entendam meu discurso e se recusem a agir como ela vida a fora.

sexta-feira, novembro 04, 2005

"Certas coisas só fazem sentido quando perdem o sentido"
(Selph)


Medo do Escuro

Por vezes a manhã é brilhante e quente e à tarde cai o temporal, ou o inverso, depois da manhã chuvosa vem a tarde ensolarada.

"Tudo muda o tempo todo no mundo" e "a única constância é a mudança, por que então temê-la já que é inexorável?

Por mais que saibamos que tudo muda, tudo passa, continuamos com medo do novo como se a novidade sempre viesse para nos prejudicar. Aliás, nem sempre. Quando a maré não está boa, as coisas andam mal paradas, desejamos mais é que o amanhã traga tudo diferente, o que é lógico e óbvio. Quando está tudo em seu lugar, as coisas encaixadas e oleadas, céu de brigadeiro, bate a insegurança. Temos medo de respirar, de mexer um dedo como se a felicidade fosse um castelo de cartas que rui ao menor movimento.

Quem ousa e pouco pára para analisar, das duas uma, ou é louco ou assim considerado, ou pouco se importa em diferenciar felicidade de momentos felizes, apenas vive.

quarta-feira, novembro 02, 2005

"Me esquenta que o cobertor é curto"
(Chico Buarque)


Você entende os índices econômicos oficiais? Divago sobre isso no site do Pedro.



O Dia Que o Piauí Mudou o Brasil

Sem qualquer aviso prévio o presidente convocou os ministros da infraestrutura e das forças armadas. Ao primeiro ordenou que cercasse todo o Piauí com um muro de concreto com quatro metros de altura, cercas de arame farpado e elétrica de ambos os lados desse muro. Guaritas com condicionador de ar e banheiro a cada duzentos metros.

Ao ministro das forças armadas ordenou que fossem vigiadas todas as fronteiras terrestres, aéreas, marítimas e fluviais. Até que o muro ficasse pronto os soldados não deveriam fazer nada.

Com a movimentação de milhares de trabalhadores em volta do estado a imprensa se alvoroçou, o Congresso Nacional virou um formigueiro e o presidente nada dizia. Refugiou-se na Granja do Torto e realizava intermináveis reuniões com donos de hotéis de todo o país, comandantes das polícias estaduais, delegados da Polícia Federal, representantes das empresas de transporte de passageiros. Nada de notas para a imprensa, sigilo absoluto.

Concluído o muro, mais uma reunião com o ministro das forças armadas e chefes de polícia. Mandou que esvaziassem o Piauí. Só deveriam ficar no estado funcionários públicos corruptos, políticos corruptos, motoristas que dão "caixinha" para o guarda de trânsito para evitarem multas, os guardas que recebiam a propina, assassinos, traficantes de drogas, políticos envolvidos em falcatruas, estupradores, estelionatários, agiotas, enfim a ralé humana.

Assim foi feito. Muito pouca gente ficou naquelas terras. A grande massa de homens de bem foi retirada para todos os estados da federação. Aviões decolavam lotados de passageiros vinte e quatro horas por dia, quem tinha medo de voar era levado de barcos pelo Rio Parnaíba ou em ônibus leito. Os doentes eram transportados em UTIs móveis ou UTIs aéreas. Em seus destinos eram hospedados em hotéis, escolas, alojamentos dos estádios, casas de amigos, hospitais...

E o país já pensava em depor o presidente, sua saúde mental não estava em ordem. O país não podia ficar nas mãos de um lunático. Os partidários do presidente faziam de tudo para manterem-no no cargo, embora também não entendessem o que estava acontecendo. Debates em todos os meios de comunicação, Anistia Internacional, defensores dos direitos humanos, advogados, Supremo Tribunal Federal, sindicatos patronais e de trabalhadores, embaixadas de todo o mundo, ONU, enfim, o mundo todo com um olho em Teresina e outro em Brasília.

Evacuado o estado, mais uma reunião com os comandantes das armas e os chefes de polícia de todo o país. A ordem agora era repovoar o Piauí. Os bandidos de cada grotão do Brasil, da mesma cepa daqueles que ficaram nas terras piauienses, deveriam ser levados em caminhões pau-de-arara para lá e impedidos terminantemente de sair. Aviões não entravam e nem saiam. A partir daquele momento o Piauí era o único presídio desse país, superlotado, diga-se de passagem.

Quase todos os estados ficaram sem governador, cidades sem prefeitos, pouquíssimos deputados estaduais e vereadores ficaram em suas terras, o Congresso Nacional foi praticamente esvaziado. O corpo de polícias foi reduzido drasticamente em todos os lugares, órgãos públicos ficaram sem funcionários, motoristas irresponsáveis desapareceram. O país estava quase parado.

Estava na hora de colocar em prática a última parte do plano.

Os piauienses deportados ganharam as casas e empregos dos que foram enviados para o Grande Presídio. Os suplentes de parlamentares que se salvaram assumiram os cargos, em muitos lugares foram necessárias outras eleições, todas pagas com o dinheiro do bolso do candidato e a preços mínimos. Funcionários de rádios, jornais, televisões e sites assumiram as empresas na forma de cooperados, novos médicos e advogados assumiram as vagas deixadas por aqueles que foram levados para trás do grande muro.

Passadas as primeiras semanas, a poeira assentando, começaram a reaparecer as cadeiras nas calçadas nos fins de tarde, crianças voltaram a brincar nas ruas, o serviço público atendia as pessoas como cidadãos, os juros caíram, a inflação zerou, o PIB crescia assustadoramente, as mortes no trânsito e nos hospitais foram a patamares comparáveis aos da Suíça, o risco país veio a cinco pontos com tendência de baixa, as delegacias ficaram às moscas, celas vazias por dias e dias a ponto dos policiais prenderem bêbados com a justificativa de se manter a ordem nas ruas. Havia nascido um novo país.

O presidente convocou, então, uma entrevista coletiva.

- Senhor presidente, aquelas pessoas levadas para o Piauí não morrerão de fome e doenças?
- Por uma questão de humanidade a União fornecerá remédios e alimentos gratuitamente por um ano. Depois disso eles que produzam.
Ninguém reclamou. Com a economia voando em céu de brigadeiro e a renda per capita comparável à do Japão permitiam essas despesas.
- Senhor presidente, por que o senhor escolheu o Piauí?
- Por ser o estado mais pobre da Federação com pessoas maravilhosas que não merecem o destino que estava traçado para elas. Terras maltratadas têm agora uma utilidade para todos os brasileiros.
Ninguém reclamou. Houve até quem se emocionasse com ato tão nobre.
- Senhor, agora que o senhor cumpriu a maior missão que um governante poderia realizar, quais são seus planos futuros?
- Vou criar porcos no sítio que o governador me deu em Buriti dos Montes.
Todos aplaudiram.

terça-feira, novembro 01, 2005

Diz-me com quem andas, adoro fofocas.



Prepotência de Doutores

Hoje cedo, folheando uma revista antiga, não antiga como O Cruzeiro ou Manchete, mas nos tempos atuais de velocidade acelerada das informações qualquer coisa com mais de dois dias é antiga, havia uma entrevista com um promotor que é conhecido em seu meio por suas interpretações heterodoxas da lei, comumente contrariando o senso comum.

Em determinado ponto declara que os médicos são formados para serem prepotentes, para acharem que são deuses e a morte existe para provar que estão errados. Por essa lógica, a medicina surgiu antes da morte. Interessante. Assim fica mais fácil imaginar as interpretações que o doutor promotor faz das leis.

Interessante também ser um membro do Judiciário quem faz tal afirmativa. Juízes e promotores estão entre os mais arrogantes profissionais desse país, os donos da verdade. Agem como se suas palavras fossem a própria lei. Sou amigo de dois juízes e de um promotor, e eles já ouviram minhas opiniões a respeito disso e, pasmem, foram humildes pare engolir e até concordar, como fez um deles.

Voltando ao complexo de superioridade de alguns médicos, vivenciei isso com meu oftalmologista.

Há dois anos não fazia exames, puro relaxamento brasileiro e masculino. Na minha última visita ao "doutor" Bráulio, não riam, é esse mesmo o nome do homem, me passou uma descompostura como se estivesse falando com o próprio filho que tirara zero em Educação Artística.

Que eu não podia ficar tanto tempo sem me consultar, que havia histórico de glaucoma na família e isso é perigoso, como eu havia me esquecido de trazer a última receita para os óculos? (e ele tem os dados dessa consulta em seu computador) e blá-blá-blá. Eu poderia até ficar lisonjeado com a preocupação do médico com minha saúde, mas seu tom de voz não foi nada amigável.

Não me agüentei:

- Peraí, doutor! Eu sou condenado a usar óculos aos quartorze anos de idade e para o resto da vida, pago uma grana preta pela consulta, outra grana preta pelos óculos a cada ano e ainda tenho que levar esporro de médico? Tenha dó...

Ficou interessante o contraste do vermelho de suas faces (imagino que mais de raiva do que de vergonha) com o branco de suas vestes.