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domingo, janeiro 20, 2008

Mal Entendido

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- Não foi nada disso, chefe! Logo eu?

- O senhor mesmo, seu Alúcio. Não tem jeito, vamos ter que instaurar um inquérito para depois abrirmos um processo disciplinar, se for o caso.

Do outro lado da porta dona Catênia esfregava as mãos de contentamento, sentia-se justiçada. Como aquele sujeitinho tivera a ousadia de dar-lhe esperanças e depois tirou o corpo fora?

No final de semana anterior havia acontecido a festa de confraternização da repartição. Comida, muita bebida e o indefectível amigo oculto.

Alúcio, o único solteiro da turma e, por isso mesmo, o que tinha a vida mais confortável, casa própria, carro do ano, motocicleta para os finais de semana, casa de praia e todos os luxos modernos úteis ou supérfluos, era também um boa praça. Não discriminava ninguém, tratava todos os colegas com cortesia, dando atenção especial aos subalternos mais subalternos. Dona Catênia, a copeira, tinha dele toda a atenção.

No dia seguinte ao pagamento, sempre trazia uma lembrancinha para ela, para a faxineira, para o zelador... Qualquer coisinha, uma flor, um chocolate, um disco que comprara do ambulante que fazia ponto na entrada do prédio, não importava o valor, era sua maneira de mostrar àquela gente que ela é tão importante quanto o contador o gerente, o chefe que vivia viajando ou “a serviço” na rua.

Festa geral, o presentinho não faltaria. Para Alaôr, o colega a quem sorteara, daria um conjunto de caneta e lapiseira, mas para o pessoal do apoio havia montado uma pequena cesta de Natal com vinho, um pacotinho de amendoim, panetone... Essas coisas. Nada caro, dentro de seu poder.

Entregou os presentes um a um. Abraço, tapinha nas costas, beijinho nas senhoras, tudo dentro da cortesia e no maior respeito.

Dona Catênia, recém separada do terceiro marido, fragilizada e carente, começou a fantasia na postura atenciosa de Alúcio uma pontinha de carinho extra, ele estava de olho nela. O pobre Alúcio, atrás de seu coração bondoso e uma falta de malícia que já lhe pregara peças antes, não percebia os olhares melosos da colega.

Ao entregar a cesta para Catênia foi recebido com um forte abraço, cheio de agradecimentos, “o senhor é um anjo”, “Deus lhe pague”. Falava e abraçava forte, rostos colados. Tentando desvencilhar-se e agradecer pelas bênçãos recebidas de Catênia, Alúcio tentou falar, pulmões comprimidos. Ao balbuciar a primeira sílaba, a orelha de Catênia ficou entre seus dentes.

- Uuuuiiiii... – saiu um “ui” meloso, chamando a tenção de todos.

Desfeito o abraço, o pobre homem percebeu que havia sido mal interpretado, mas não achava jeito de desfazer aquilo. Tentar explicar, desculpar-se, seria apenas uma maneira de reavivar o que para ele havia sido um acidente que logo se dissiparia na alegria da festa que mal começava.

Ledo engano. Catênia o seguiu por toda a noite. Copo de vinho pra dentro e lá ia ela à caça. Alúcio escapava por um lado e logo ela aparecia do outro, copo de cerveja na mão e bandeja de salgadinho na outra oferecendo os petiscos e a si própria. Alúcio fazia de conta que alguém o chamava do outro lado do salão e escapava, logo ela reaparecia pelas costas, copo de champanhe na mão e rosa vermelha retirada da decoração nos cabelos. Alúcio fingia a necessidade de ir ao banheiro. Demorava-se, espiava pela festa da porta entreaberta, esperava Catênia afastar-se para bem longe e saía de fininho. Como um ectoplasma, ela materializava-se à sua frente, copo de caipirinha na mão e uma coxa de peru na outra.

Só tinha um jeito, sair à francesa e rezar para que na segunda-feira tudo fosse passado, a ressaca moral da copeira tivesse passado, todos fizessem de conta que nada havia acontecido, enfim, vida normal. Mais um devaneio do ingênuo.

De manhã foi acordado pelo telefone. Era Catênia, insinuante, com voz embargada pelo álcool, havia acabado a farra naquele instante.

- Lulu, perdi minha carteira na festa – e soltava uma gargalhada – tô sem dinheiro pra ir pra casa. Não tem um cantinho na sua cama pra eu dormir?

Tudo, menos isso!

Delicado como é seu hábito, Alúcio desculpou-se, explicou o mal entendido, que não haveria romance... Mais de duas horas para demovê-la daqueles propósitos libidinosos. Deixou-a chorando, mas entendendo que nada havia, haveria ou deveria haver entre os dois. Agora, sim, ficaria tudo bem. Não ofendera, fora um cavalheiro.

Um dia ele aprenderá! Um dia...

Dona Catênia não é daquelas pessoas que convivem bem com a rejeição. Chegou antes de todos ao trabalho na segunda-feira. Montou plantão à porta do gabinete do chefe. Assim que seu Argemiro chegou, recebeu o relato de que a pobre e chorosa copeira havia sido assediada pelo inocente Alúcio, que este lhe prometera mundos, fundos e cheiro no cangote.

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