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quinta-feira, janeiro 17, 2008

Tudo Errado

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Tão bonita... Vinte, vinte e um anos, estudante de psicologia na universidade federal, cheia de sonhos e de futuro, fazia ponto pelos bares da Avenida Nossa Senhora de Copacabana por falta de emprego melhor e para ajudar os pais que já não conseguiam arcar com as suas despesas em livros, transporte. Não conseguiam sequer pintar o casebre em que viviam em Bonsucesso.
Isso e mais, Suzeide me contara no quarto de hotel, os dois sentados na cama tomando cerveja do frigobar.
Ela sabia que era a prioridade para os pais desde a infância. Depois da morte do irmão que se metera em coisa errada e, drogado, resolveu peitar uma patrulha armada da PM, Suzeide passou a ser o maior e único cuidado, o alvo de todos os carinhos, o orgulho e preocupação dos pais.
A encontrei por acaso. Aliás, a princípio pensei que fôra acaso, mas agora já vejo no esbarrão que ela me deu um pretexto para buscar conversa e, talvez, um cliente. A distância entre as mesas era grande o suficiente para passarmos os dois ao mesmo tempo, sem ao menos nos tocarmos. Ela abriu um sorriso, o mais lindo sorriso que vi naquela cidade que eu sonhava conhecer desde menino, pediu desculpas, também me desculpei, tentando ser galante eximindo-a de culpa.
    - Você está sozinho?, ela me perguntou.
    - Estou. Quer me fazer companhia?
    - Você me paga um drinque? - Até aquele dia, "drinque" era, pra mim, palavra de novela.
Levei-a à mesa, cavalheirescamente puxei a cadeira, sentei-me de frente para ela preservando a distância respeitosa.
Eu bebia uísque com gelo, tentando impressioná-la, pagando cara por dose. Encantado por seus olhos negros e o sorriso que não se apagava, seu sotaque chiado e os cabelos que não paravam quietos, balançando a cada toque da brisa salgada que atravessava a avenida, pouco me importava o preço da bebida. Aquela noite poderia ser a última do mundo que pouco me importava. Os anos de preparativos e economias para conhecer o Rio estavam valendo, aquela mulher apagava todos os anos de planejamento.
Ela bebia suco de limão, aos pouquinhos. Um gole dela para cada duas doses minhas.
Quando voltei do banheiro, encontrei Suzeide sentada na cadeira ao lado da minha.
    - Sentei mais pertinho de você, assim te ouço melhor.
Nem seus erros de concordância, coisa que me enervava em outras pessoas, tinham importância. Por mim ela poderia rasgar a gramática sobre a mesa e tocar fogo, eu nem ligaria.
Ela me falava das maravilhas da cidade, que me levaria para passear no bondinho de Santa Tereza, iríamos à praia em Ipanema, conheríamos o interior do Teatro Municipal, onde ela ainda não entrara, participaríamos de uma roda de samba sob os Arcos da Lapa... Eu aproveitava por antecipação os passeios na companhia da anfitriã perfeita.
Me sentindo meio grogue, mas não querendo ir embora, fui despertado pela sua mão em minha coxa.
    - Você é tão diferente dos outros homens que conheço. Não me cantou, não me convidou para ir a um lugar mais tranqüilo... Ficaria conversando com você a noite inteira. Mas está com a cara tão cansadinha. Onde você está hospedado?
    - No Max Hotel, logo ali, duas quadras daqui.
    - Vou te acompanhar até lá. A barra aqui é meio pesada, turista não pode dar mole, não. Ainda mais bebinho assim como você tá.
    - Já? Tá querendo ir embora?
    - Não, fofo, com você eu ficaria aqui até você cansar. Mas amanhã de manhã nós vamos à praia, esqueceu?
    - É, você tem razão. Amanhã será um longo e ótimo dia.
Paguei a conta e saimos de braços dados em direção ao hotel. Ela guiando meus passos bêbados entre risadas.
Não estranhei o porteiro dar uma piscadela para ela enquanto me entregava a chave do apartamento. Quando voltei para me despedir, ela se ofereceu para me acompanhar até o quarto. Não aceitou minha dispensa, eu estava bêbado, ela não se perdoaria se eu levasse um tombo e me machucasse. Tão atenciosa, tão carinhosa.
Entrou no apartamento junto comigo, oitavo andar. Ficara chateado de não terem me conseguido um quarto de frente para o mar. Agora já não ligava.
Me ajudou a tirar os sapatos, me deitou na cama sentando-se ao lado. Começou a contar sua vida, a infância pobre, as brincadeiras na rua, a morte do irmão, o sofrimento dos pais, o vestibular e que agora se prostituía para sobreviver e dar algum conforto para os velhos.
Nunca havia conversado com uma prostituta e aquelas certezas que o pastor dava que prostitutas eram enviadas de Satanás para tentarem os homens para o pecado, não me pareceram verdades. Ela era apenas uma pobre criança sem alternativa e que agora retirava o sustento da única coisa realmente sua: o corpo.
Sentado na cama, eu me esforçava para ficar desperto e mostrar interesse no que ela me dizia. Mas o álcool e o cansaço da viagem, sete horas de avião, atraso no aeroporto e a euforia de estar na cidade dos meus sonhos, venceram. Adormeci sem desejar.
Acordei incomodado com um vento frio que atravessava minhas roupas. Lembrei dela e me sentei sobressaltado. Havia ido embora? Voltaria pela manhã? Tonaríamos a nos ver?
Entorpecido com aquele sonho de olhos abertos, vi a porta da varanda aberta. Por ali entrava o vento frio. Levantei-me para fechá-la para depois voltar para a cama e sonhar com Suzeide. Levei um susto ao vê-la ali, na varanda. Não fora embora? O que fazia ali tão quietinha? Antes de perguntar qualquer coisa, ela também assustada ao ver-me de pé, virou-se escondendo um grito, em suas mãos uma carteira, a minha carteira. Levei a mão direita ao bolso de trás da calça, onde a guardara para certificar-me que era a minha. Entendi mais pela reação dela, tentando esconder a carteira das minha vista, do que pelo raciocínio lógico.
    - Você está me roubando?
    - Afasta de mim senão eu grito.
    - Devolve isso aqui!
Nos atracamos na varanda. Ela gritava e afastava as mãos das minhas mãos, segurando a carteira com uma das mãos e meu dinheiro e os cartões de crédito com a outra. Eu gritava, ela gritava. Eu não queria tocá-la, queria meus pertences de volta.
Para afastar-se mais, ela subiu na murada, desejava passar para a varanda do apartamento ao lado. Aproveitando sua preocupação em fugir, peguei a carteira com a mão esquerda e o dinheiro e os cartões com a direita. Ela tenta pegar de volta, escorrega na amurada e despenca no abismo. Nenhum grito, apenas um vôo silencioso interrompido pelo barulho surdo no calçamento do estacionamento, bem entre dois carros.
Apavorado, o raciocínio entorpecido pelo álcool que diluia-se rápido na adrenalina, não pensei duas vezes. Fechei a porta da varanda, joguei as poucas coisas que havia tirado na mala dentro dela novamente, saí em direção às escadas. Enquanto descia, imaginava como sair do hotel. Mandar fechar a conta àquela hora da madrugada, seria, pelo menos, muito estranho, ainda mais que eu tinha uma reserva para cinco dias; o porteiro havia visto Suzeide subir comigo, estranharia ela não descer junto; e se já tivessem achado o corpo? Ao chegar ao térreo, percebi que haviam duas portas, uma que dava para o saguão e outra, provavelmente, para as dependências de serviço. Saí por esta. Olhei no relógio, duas e meia. Passei pela cozinha, onde havia um sonolento cozinheiro escorado no balcão, dormindo em pé. Sem ruído, continuei em frente. Outra porta e a lavanderia. Uma porta à esquerda, o estacionamento. Lá no fundo, entre dois carros, uma sombra disforme, poderia ser confundida com um saco de lixo nao penumbra. Pensei em ir lá e me certificar que ela estava morta. Melhor não, sem perda de tempo. Como era um hotel simples, não havia manobrista. Segui pelo beco lateral, entrada dos carros, um portão sem trava, e me vi na calçada.
A um quarteirão dali havia visto um ponto de táxi. Passo acelerado, mas tentando aparentar naturalidade, me dirigi para lá. Para onde ir? Minha passagem de avião estava marcada para dali a cinco dias, se eu a remarcasse... Melhor não. Ao entrar no hotel, fizera minha ficha e os dados eram todos reais: nome, endereço, cidade... A polícia checaria o aeroporto logo de cara. A rodoviária!
O primeiro ônibus só sairia às cinco horas, para Juiz de Fora. Era um bom destino. Eu nunca tinha ido a Minas, jamais me procurariam ali. De cidade em cidade, desviando rota, eu voltaria para casa. Teria bastante tempo para inventar uma história, criar um álibi. O pessoal do hotel não reclamaria de calote, havia pagado três dias com antecedência, dois dias de lucro para o Max Hotel.
Não consegui dormir durante a viagem. Criava estratégias de fuga e desculpas, mas logo as descartava, não pareciam verossímeis. Rezava pela alma de Suzeide e pedia perdão aos seus pais, que agora eu imaginava nem existirem, a ladra tinha inventado outra vida para me sensibilizar. A viaja era longa, não chegava a nenhum lugar. Ainda tinha essa parada em Três Rios.
O que eu não esperava, senhor delegado, era que a polícia do Rio fosse tão eficiente.

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