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sábado, janeiro 12, 2008

Vodu

blood-voodoo

O Mata Azul era um daqueles milhares de restaurantes de beira de estrada que proliferam Brasil a dentro. De ninguém sabe onde uma povoação foi-se formando ao seu redor. Atraídos pelos caminhões e, aos poucos, os carros de passeio, começaram a brotar do chão borracheiros, mecânicos, vendedores ambulantes que seguem os ônibus onde quer que eles vão, mascates... O casario brotava de madeira, depois o de tijolos sem engenheiro ou arquiteto, apenas argamassa e suor.
Uma das primeiras edificações foi de um negro calado, cabelos já grisalhos e que pouco falava o português. Por não conseguirem entender seu nome, Toussaint Dessalines, não demorou a receber o apelido de Tutu. Os poucos e depois muitos moradores chamavam-no de gringo, uns diziam que era “americano” (para os poucos letrados, todo estrangeiro é “americano” ou, simplesmente “gringo), outros mais “estudados”, talvez por terem concluído o primário, identificavam o sotaque alemão ou argentino. Não desconfiavam que Tutu era haitiano, fugido de seu país para não acabar no paredão de Papa Doc, não por questões políticas, mas porque combatia o vodu que o ditador utilizava para aterrorizar os adversários, que Tutu chamava de “vodu negro”, praticando o “vodu branco”.
Toussaint fazia os despachos para qualquer cidadão que o procurasse, desde que não tivesse a intenção de ferir outras pessoas e gratuita e prazerosamente quando era para desfazer um feitiço ou uma praga rogada por Papa Doc ou seus feiticeiros particulares.
Tendo sua cabeça colocada a prêmio, embarcou clandestino num navio que partia para a Colômbia. Mas era perto demais de seu país, os braços longos do déspota o alcançariam com facilidade naquele litoral. Embrenhou-se na mata, caminhou dias, comeu raízes e carne de macacos, cobras e aves, qualquer ave. O muito dinheiro que levava no embornal, economias angariadas por anos, de nada serviam naquele inferno de insetos, umidade e calor. Atravessou rios, subiu e desceu montanhas, abriu picada no peito e na força do facão cego do qual não se separava e hoje se encontrava pendurado na parede da sala como um troféu.
Sem relógio ou calendário, perdendo a conta dos dias há muito, não sabe por quanto andou e nadou sem ver viva alma humana. As animais que pôde, separou do corpo e comeu a carne. Um dia, já quase entregando os pontos e se deixando morrer, deu-se naquela estrada. Amolou o facão numa pedra e com ela raspou a barba e cortou a cabeleira já enorme e cheia de nós. Precisava estar o mínimo apresentável quando encontrasse civilização. E tudo o que viu parecido com civilização foi aquele restaurante de paredes de madeira recém pintadas de azul.
Ressabiado, entrou e pediu um copo com água em seu francês acreoulado.
- Eau, s’il vou plaît.
- Coméqueé?, Radovânio levaria o resto da vida contando para os amigos como aquele homem havia aparecido por ali com a língua enrolada e falando “ou, sivuplé”.
Também não entendendo a interrogação do balconista, Toussaint fez-se entender por gestos.
- Água? Tu tá querendo água?, esforçava-se para entender e atender o visitante.
- Oui! Água!, foi a primeira palavra em português aprendida pelo haitiano.
Tomada a água, meteu a mão no bolso, onde havia tomado o cuidado de separar algumas cédulas de gourde.
- Ê, moço, esse dinheiro não serve aqui, não.
Enquanto falava, Radovânio gesticulava abanando as mãos em negativa e empurrava a cédula de volta ao dono. Sem entender as palavras, mas compreendendo a negativa dos gestos e a cara desgostosa do homem que o atendia, Toussaint retirou o restante das muitas cédulas da bolsa mostrando-as para o vendedor, deixando claro que só tinha iguais àquela que apresentara.
- Não vou cobrar a água, não, moço. Falava e gesticulava Radovânio. A palma da mão voltada para baixo e os dedos abanando de dentro para fora, como se enxotam os animais, indicava a porta.
Sem arredar pé, Toussaint alisava a barriga e apontava para a boca, o mundialmente conhecido sinal de que tinha fome.
- E vai pagar com o quê? Esse dinheiro não paga nada aqui. Nem sei que dinheiro é esse.
A necessidade ensina o sapo a pular. Percebendo a rejeição de Radovânio, o negro correu para uma vassoura e fez arremedos de que varria o salão, que limpava a mesa, arrumava a cadeira... O dono do restaurante compreendeu. O visitante se propunha a trabalhar para pagar a comida com trabalho. Como se encontrava sem ajudante e a mulher o deixara, de jeito nenhuma iria para aquele lugar nenhum, viver no meio do mato por conta de um restaurante que sequer sabia se teria clientela, a troca foi aceita.
Por muito tempo o escambo era a relação entre os dois. Nas horas vagas Radovânio ensinava o português necessário para o ajudante: arroz, feijão, água, prato, copo, talher... E lhe dava almoço e janta, o que sobrasse dos clientes ocasionais. Por sua vez, Touissaint varria, lavava a louça, limpava os banheiros, atendia a freguesia, cozinhava aprendendo a usar os temperos locais, com menos pimenta do que era hábito em seu país.
Nas horas vagas o haitiano usava as ferramentas do patrão e derrubava mata e serrava tábuas, aos poucos ia construindo sua casinha. Depois da casa levantada, ocupou-se da horta. Cercou o terreiro e aproveitava as sementes que sobravam na cozinha do restaurante. Tomate, cebolinha, coentro, mamão, pimentão... Não demorou muito para tornar-se fornecedor de vegetais para Radovânio.
Ia se independendo até o dia em que deixou de vez trabalho de faz-tudo. Já haviam outras casas e comércios instalados. Tutu aumentou seu quintal e sua horta, passava a ser fornecedor verduras e legumes para todas as casas. Já não precisava mais caçar e colher para comer. O tempo, porém, era pouco para cozinhar. Agora quem precisava de auxiliar era ele. Roçar, adubar, semear, regar, tratar dos besouros e lagartas, tudo aquilo tomava muito seu tempo. Passou a comer no Mata Azul.
Todo dia sentava-se à mesma mesa, comia, descansava uns minutinhos, pagava pelo prato e voltava para a lida.
A população aumentava dia a dia. Crianças nasciam, homens envelheciam e todos, vez por outra, adoeciam. Relembrando seus tempos de curandeiro, passou a encomendar ervas aos caminhoneiros, passava a ser o médico. Por isso admirado e respeitado.
Anos e anos na roça, recebendo a visita dos doentes e sentando-se à mesma mesa para as refeições.
O negócio de Radovânio também crescia. O povoado e os passantes lotavam o lugar.
Um dia, casa cheia, Toussaint encontrou sua mesa ocupada, assim como as demais. Escorou-se no balcão e esperou. Vagou a mesa. Quando se dirigia a ela, Radovânio o impediu.
- Espera aí, Tutu, tem cliente na sua frente.
Tutu sabia que não era verdade. Tentou argumentar, mas foi ignorado pelo ex-patrão que o empurrou com a mão no peito e, cheio de mesuras, levou para a mesa dois caminhoneiros recém chegados.
O haitiano não discutiu, não reclamou, nenhuma reação. Saiu do restaurante e limpou os pés no carpete da entrada, ciscando para dentro da casa, coisa que normalmente se faz ao entrar, não ao sair. Ao mesmo tempo que ciscava, retirava um pozinho marrom do bolso da calça e o jogava no tapete, atirando-o depois para o lado de dentro com os pés.
Da rua, quem passava pela porta de sua casa o ouvia cantando uma música esquisita em língua desconhecida.
No dia seguinte houve um acidente com a cozinheira do Mata Azul, queimadura grave. No segundo dia um cliente contraiu uma infecção intestinal após almoçar e morreu mesmo após tomar um chá feito por Tutu. No terceiro dia o novo ajudante de Radovânio tropeçou nas próprias pernas derrubando toda a refeição no peito de um matador que estava de passagem para fazer um servicinho numa cidade próxima. O pobre rapaz foi assassinado com um tiro na testa. No dia seguinte, uma pernamanca do teto arrebentou e parte do telhado despencou sobre uma das mesas, ocupada por uma família que se dirigia para uma pescaria, nenhuma vítima fatal, mas um tremendo prejuízo para o dono que teve que pagar as despesas médicas da família machucada. No quinto dia o restaurante não abriu, não havia dado tempo para se consertar o telhado. No sexto dia, novo incêndio. O fogão a lenha rachou e as brasas se espalharam pelo chão de madeira já seca depois de anos de uso. Não deu tempo sequer para que os baldes de água que todos os vizinhos traziam afobados fossem jogados nas chamas. O fogo espalhou-se como se num palito de fósforos.
De sua varanda, sentado na cadeira de balanço, Toussaint olhava a cena de desespero com um sorriso leve nos lábios ocupados com um cachimbo fumegante.

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