Não acontecia nada ao seu redor que ele não visse com o pior dos olhos, tudo e todos tinham uma faceta maléfica escondida, segundas intenções escondidas, propósitos inconfessáveis.
Quando criança, evitava jogar bola com os coleguinhas. Olhava o zagueiro adversário e já adivinhava sua intenções em quebrar-lhe a perna. Fora de cogitação jogar de atacante. No meio de campo, no seu time havia um craque, esse não lhe passaria a bola, faria apenas figuração e papel de bobo. No time adversário jogaria o Manolo, moleque revoltado porque os pais vieram embora do Peru sem lhe pedir opinião, aquele moleque encontraria nele o esparro ideal. Nem penar! No gol? Tá maluco? Já notaram como o centro avante deles chuta forte? E se a bola lhe acertar a boca do estômago ou, pior, um pouco mais abaixo? Sem falar que se não se arranhasse todo no areião para evitar um gol poderia ser linchado pelos colegas.
Se era dia de prova, mesmo que tivesse estudado a noite anterior inteira, tivesse a matéria na ponta da língua, sabia que na hora lhe daria um branco. Sem falar que professor nenhum ia com sua cara, lhe dariam bomba só de sacanagem. Nunca tirou menos que sete, mas tinha certeza que os professores estavam esperando a hora certa para massacrá-lo no final do ano. Coisa que nunca aconteceu.
Os amigos o encorajavam a se aproximar de uma ou outra garota que lhe dava bola. Tá Louco? Essas garotas só querem nos fazer de palhaço. Nos conquistam, nos fazem pagar o sorvete, o cinema, as flores o presente de aniversário, fazem juras de amor eterno e, quando menos esperamos, nos deixam na mão, coração partido. Isso se não nos trocarem pelo melhor amigo, aí a gente perde a namorada e o amigo. Conhecia dezenas de casos e não cairia nessa.
Vestibular. Ah, meu Deus do céu, não iria passar. Mesmo tendo sido o primeiro aluno da turma, desde a alfabetização, tinha certeza que não passaria. Queria ser advogado, nem tentaria, era um dos cursos de maior concorrência. Decidira por biblioteconomia, meio candidato por vaga. Embora nada o demovia da idéia de que não conseguiria a pontuação mínima. Se dependesse dele, as vagas não seriam preenchidas. Passou em primeiro, com pontuação maior do que o primeiro de direito. Só havia uma explicação: ou os caras que fizeram direito são muito burros ou a correção dos gabaritos estava errada, imagina... Primeiro?
Cursou sabendo que não conseguiria emprego depois. Conseguiu. Melhor ainda, formou-se no mesmo ano em que o prefeito de sua cidade, de onde saíra para estudar na faculdade, resolvera inaugurar a biblioteca municipal. Voltou para sua terra querida, que mesmo com a instalação de uma fábrica de automóveis e o pólo moveleiro, jamais se desenvolveria, e enumerava as razões para a eterna estagnação do lugar. Errou em suas previsões, mas não dava o braço a torcer: havia dinheiro especulativo naqueles empreendimentos, um dia tudo ruiria ou a Polícia Federal descobriria o esquema, as fábricas seriam fechadas e todos os empregados iriam para a rua da amargura.
Aos quarenta anos, solteirão, cidadão respeitado, bibliotecário-chefe, casa própria, carro do ano, que fundiria o motor a qualquer momento, mesmo ele trocando o óleo e levando para a manutenção todas as semanas, teve um ataque cardíaco.
Prontamente atendido, levado às pressas para o hospital, ditava seu testamento para o enfermeiro. A casa iria para a tia Etelvina, o caro para o primo Hildebrando, a coleção de camisas de clubes campeões (todos por erros dos juízes ou azar dos adversários) iria para o afilhado, o automóvel ( se ainda estivesse funcionando) para o tio Godofredo, o dinheiro da poupança (e não era pouco, guardado para quando surgisse uma grande catástrofe) iria para o orfanato de Irmã Estileide, talvez pudesse salvar da inanição alguma daquelas quarenta crianças assistidas.
No hospital, o diagnóstico. Nada muito sério, apenas uma pequena veia, sem grande comprometimento para o funcionamento do coração, havia sofrido uma obstrução de setenta por cento. Nada que alguns medicamentos, alimentação saudável e repouso não resolvessem. Para ele não estava nada bem, os médicos eram uns incompetentes! Queriam sua morte! Foi atrás de segunda, terceira, quarta opiniões e todas eram a mesma. Melhor desistir, havia um complô. Além do mais, seu plano de saúde se recusava a pagar outros exames iguais.
Viveu muito e bem, embora sempre insatisfeito, temeroso e temendo o pior do mundo.
Há muito haviam esquecido seu nome, tornara-se apenas Urucubaca para os amigos e conhecido. Foi uma surpresa para a maioria quando o padre, na missa de corpo presente, homenageou o morto citando seu nome: Poliano.
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